Quando Mayumi decidiu agir (por Kazuaki Tanahashi)
Texto de Kazuaki Tanahashi no livro Divine Gardens, de Mayumi Oda. Tradução por Ana Paula Ueti e Polliana Zocche, revisão de Fábio Rodrigues.
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Mayumi Oda, que vivia não muito longe de minha casa em Berkeley, na Califórnia, me telefonou no começo de Janeiro de 1992. Ela me disse que sua deidade havia lhe mandado uma mensagem: que ela deveria tentar parar o programa japonês de energia nuclear de plutônio.
As pinturas de deidades de Mayumi são coloridas e sensuais, e ainda assim profundamente espirituais. Eu não sabia que ela falava com suas deusas, ou ainda que suas deusas falavam com ela, mas eu não fiquei surpreso. Alguns japoneses têm tendências xamânicas e se comunicam com o divino através de seu poder intuitivo. Eu estava acostumado com esse tipo de conversa, uma vez que meu pai e muitos de seus alunos frequentemente praticavam receber mensagens de deuses e deusas.
Eu disse que ficaria feliz em ajudá-la e sugeri que perguntássemos aos membros do KAI para trabalharem conosco. KAI, que significa um encontro ou uma assembleia em japonês, era um grupo de mais ou menos 30 japoneses que viviam na área da Baía de São Francisco. Assim que a Guerra do Golfo Persa havia estourado, alguns desses japoneses haviam se juntado e formado um grupo de estudos para discutir como trazer o Budismo engajado à situação no Oriente Médio. Eu havia facilitado nosso estudo dos ensinamentos de Thich Nhat Hanh, usando o esboço de minha tradução japonesa de seus livros ‘Para viver em paz’ (Being Peace) e ‘O Coração da Compreensão’ (The Heart of Understanding). Mayumi participou de alguns dos encontros.
“Samantabadra é a Bodisatva da prática brilhante. Associada à ação, ela nos ensina que a sabedoria só existe para que seja colocada em prática, e que só é boa na medida em que beneficia todos os seres.”
—Mayumi Oda
Quando Mayumi decidiu agir, nós todos havíamos sido informados sobre as graves implicações do projeto japonês de plutônio pelo cinegrafista Kiyoshi Miyata. Ele havia visitado KAI e nos dado o sinal de alerta. Agora era a hora de ver como os princípios do Budismo engajado, que havíamos estudado, poderiam ser aplicados em uma ação ambiental de escala global.
A dose letal de plutônio é um milionésimo de uma onça [sendo que uma onça corresponde a aproximadamente 28 gramas]. Mesmo se uma pequena porção da carga fosse liberada no ar ou no mar, isso seria catastrófico para toda a população e o ambiente da região. O elemento é mais difícil de controlar que o urânio, e no caso de uma fusão, uma grande área nos arredores, possivelmente do tamanho da França, ficaria inabitável. Além disso, o plutônio é o principal componente das bombas de hidrogênio — é muito mais fácil montar uma bomba rudimentar com ele. Em função disso, a maioria dos países desistiram de projetos de geração de energia a partir do plutônio, mas o Japão não. O programa de energia plutônica era o principal projeto nacional do Japão em sua esperança de se tornar energeticamente independente.
Nos meses seguintes, muitos ativistas e artistas japoneses que viviam na Área da Baía de São Francisco formaram um grupo chamado Plutonium Free Future [Futuro Livre de Plutônio]. Naquela época, parecia impossível para qualquer grupo ou nação a mudança de direção do perigoso programa japonês de energia plutônica. O público japonês estava em sua maioria alheio a essa questão.
Nosso grupo decidiu focar no primeiro carregamento de plutônio que sairia da França para o Japão no final de 1992. Um mês depois de nosso primeiro encontro, nós criamos uma cartilha intitulada O Plutônio Japonês: A Maior Ameaça ao Planeta. Nós alertamos nessa cartilha sobre o perigo da iniciativa plutônica e pedimos para organizações estrangeiras colaborarem com o impedimento do carregamento de plutônio. Nós decidimos enviar um representante à Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, no Brasil, e eu fui solicitado a ir. Em abril de 1992, eu trouxe uma mala cheia de nossas cartilhas para o enorme encontro de organizações não governamentais chamada de Fórum Global, e falei aos seus representantes sobre o problema e pedi por colaboração.
Mayumi foi para o Japão e formou um grupo de mulheres chamadas Niji no Hebi (Serpente Colorida) como uma organização irmã ao Futuro Livre de Plutônio. Indivíduos e grupos que eram contra o carregamento se reuniram. Nós começamos a ter membros não japoneses, vendemos pinturas da série Earthship, de Mayumi, para levantar fundos, e fundações começaram a doar para nós.
Encontrar com o advogado Julian Gresser foi talvez o ponto chave de nossa campanha. Ele havia ensinado lei ambiental japonesa em Harvard e na Universidade Doshisha em Kyoto (em japonês). Como conselheiro para o gabinete japonês, ele foi consultor de grupos, corporações, e para a Comunidade Européia em negociações com empresas japonesas e o governo. Acontece que Julian era um praticante do Zen e do Aikido. Ele disse que deveríamos identificar a pessoa que fosse a principal tomadora de decisões, compreender sua dor e aplicar toda nossa pressão sobre ela para aliviar sua dor — quando a pessoa recebesse uma força avassaladora, ela iria compreender as potenciais consequências do destrutivo programa pelo qual era responsável, a ponto de ela ter que ceder. Eu imediatamente sabia que Julian estava falando sobre o Yonkyo do Aikido (Quarta Técnica), que é pegar a parte de trás do pulso do oponente e aplicar a pressão “faca de mão”, usando todo o peso do corpo como alavanca. Tem uma pequena área no pulso que dói tremendamente quando alguém aplica pressão nela.
Nós escolhemos o Sr. Kanzo Tanikawa, Ministro dos Assuntos Domésticos, que era diretor da Agência de Ciência e Tecnologia, como o receptor de nossa pressão concentrada. Nós decidimos entrar com uma petição de objeção contra o carregamento de plutônio com o governo japonês. Em uma carta ao Sr. Tanikawa, anexada à petição, Julian questionou três pontos:
Como você planeja prevenir um Chernobyl flutuante?
Quem será responsável pela catástrofe?
Que medidas foram tomadas para compensar as vítimas?
E então elevou sua voz:
É uma afronta à decência humana que você persista obstinadamente, ignorando todos os protestos, quando você está ciente dos riscos, mas resolveu, por interesses próprios, ocultá-los, ou talvez, por preguiça ou indiferença, você não está nem ciente desses riscos, nem se dando ao trabalho de se informar.
Mayumi, como diretora da Plutonium Free Future, e Julian, como nosso principal advogado, assinaram essa carta, que enviamos a todos os membros do Gabinete, bem como ao Imperador do Japão e aos principais meios de comunicação. No Japão pós-Segunda Guerra Mundial, existe uma regra não escrita de nunca envolver o Imperador na política, com base nos fracassos fatais do passado. Mas pensamos que poderia haver uma exceção em um caso extraordinário de consequências graves em potencial, como ir para a guerra ou quando uma política extremamente destrutiva fosse implementada. Nosso julgamento foi que o programa de plutônio do governo era um desses casos.
Nossa rede internacional começou a mostrar resultados. Mensagens de fax invadiram nosso escritório na garagem. Ativistas no Japão, nos Estados Unidos e em outros lugares fizeram tentativas desesperadas para impedir a partida do carregamento de plutônio da França. Concentrei-me em instar os membros do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, funcionários japoneses e quaisquer outros que pudessem ter influência, a bloquear a remessa por razões de segurança ambiental. No entanto, o Akatsuki Maru, um navio porta-contêineres que transportava plutônio, completou sua polêmica jornada até o porto de Tokai dentro do cronograma. Logo após sua chegada, os jornais relataram que havia uma profunda divisão no gabinete japonês sobre a questão do plutônio. Devido à forte oposição internacional, o governo não conseguiu realizar os próximos embarques programados. Além disso, em 22 de fevereiro de 1993, o The New York Times publicou um artigo com o título, “Japão, curvando-se à pressão, adia projetos de plutônio”:
O Japão decidiu adiar, por até 20 anos, uma série de projetos de energia nuclear multibilionários … A decisão do governo afeta o cronograma de construção de vários reatores reprodutores e uma segunda usina de reprocessamento. Ele também parece fadado a cortar drasticamente as remessas de plutônio da Europa porque o Japão terá muito menos capacidade de usar o combustível de plutônio.
Esse corte dramático no programa de plutônio foi conduzido sutilmente, mas foi oficialmente confirmado no plano revisado de desenvolvimento de energia nuclear de longo prazo do governo japonês.
Como esse avanço foi possível? Os problemas tecnológicos e econômicos que os projetos de plutônio enfrentaram certamente ajudaram. Anos antes de começarmos, muitos grupos e indivíduos trabalharam nessa questão. A mudança no projeto nacional do governo japonês, no entanto, poderia muito bem não ter acontecido sem o empenho de nosso pequeno grupo comprometido. Até este ponto, o Japão não retomou o transporte de plutônio ou a produção de plutônio em grande escala.
Nossa experiência confirmou para mim que vários indivíduos comprometidos, com algum conhecimento de pressão política, podem mudar a direção de um grande projeto nacional ou multinacional. É claro que precisamos sempre nos lembrar de que nossa intenção deve ser altruísta e afirmativa para tornar o trabalho valioso e eficaz.