Traiu, acabou?
Já fui “traído” duas longas vezes. E acompanho quase diariamente casais com relações paralelas, de uma noitada a uma outra família. Em todos os casos, boa parte da dor vem de crenças (“Só os insatisfeitos traem”) e regrinhas (“Se ele ficar com outra, está tudo acabado!”) que fazemos questão de manter desde o começo.
A vida dá risada de nossas ideias sobre como a vida deveria ser. Enquanto assinamos papéis, ela escancara: todas as relações são abertas. Nenhum compromisso de fidelidade consegue minar a possibilidade de aparecer um terceiro. E não defendo a poligamia. Falo para monogâmicos. Um casal que se propõe a uma relação duradoura precisa estar disposto a enfrentar uma eventual paixão intrometida. Em cinco, quinze, vinte anos, grandes chances de acontecer. Se a traição for um motivo consensual para o fim, algo está torto desde já: estamos colocando a relação longe da imprevisibilidade, ou seja, num lugar sem vida.
Tal familiarização com a realidade das relações paralelas reduz a luta contra a vida (“Isso não deveria ter acontecido!”), a sensação de fracasso (“Se aconteceu, eu falhei”) e aquela autorização para soltar o pior de nós (“Agora é inevitável surtar e culpar”). E se aceitarmos que é OK acontecer, que necessariamente não é relacionado a algum erro nosso e que sofrer é opcional? Dispensada a lei “traiu, acabou”, surgem espaços para contar ou não contar quando acontecer, sem tanto medo de afastar imediatamente o outro. Essa simples disposição evita aquele imbróglio de mentiras, vidas particionadas, culpa e descobertas traumáticas.
É como se um dissesse ao outro: “Se você se envolver com outros, vai doer muito, mas não quero que meu ciúme e sofrimento direcionem nossa vida. Se o melhor para ambos for seguir, quero ser capaz de seguir e superar minhas aflições. Se o melhor para ambos for terminar, quero ser capaz de terminar sem culpados”. Afirma-se o eixo do casal: “Podem surgir terceiras, quartas pessoas, mas elas não vão comandar nossa relação, isso cabe a nós”.
A traição não é um fato — externo, independente de nossa percepção. É uma experiência: nos sentimos traídos, abandonados, rejeitados, humilhados. Toda experiência passa por corpo e mente, então pode ser transformada. É possível seguir um relacionamento em meio a um amor paralelo sem olhar, pensar, sentir e agir excessivamente da posição do corno (quando o peito vira um corredor de ar frio e alucinamos que cenas e pessoas têm o poder de nos machucar).
Não é fácil, mas por que seria?
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