Arte para quê?
Não há como pensar a arte sem pensar em estética e ética, que junto com a lógica compõem o tri-eixo de toda filosofia já feita no ocidente. É de se esperar que seja um dos temas mais especuláveis.
Do modernismo para cá, a visão prevalente parece ser a de que não deveria haver julgamento moral possível sobre as expressões artísticas e culturais, e questionar isso é igual questionar a própria liberdade humana. Claro, há a liberdade fundamental para fazer qualquer coisa, e o julgamento de valor só é possível na medida que elencamos alguma visão de mundo como referencial.
E isso já fazemos, já vivemos enlaçados por uma teia bem complexa de crenças . Não há isso de não crer, todos acreditam em algo e a escolha possível é a respeito do que e de como crer. O refúgio da nossa sanidade pode incluir deus, premissas científicas, um conjunto intangível de princípios éticos, dinheiro, coisas, empregos, o próprio intelecto, a família, os “bons costumes”, a posição política, dois banhos ao dia, uma dieta, opiniões diversas de como a vida deveria ser — qualquer coisa entra na lista. Nem o estado provê laicidade, basta caminhar em qualquer espaço público para ver que a pregação religiosa e ideológica está apenas substituída. As placas ainda dão mensagens bem claras e eficientes sobre como levar a vida, como empregar o tempo, consumir, se entreter, perguntar pouco e se ajustar.
Quando a arte é boa?
“Todos os seres desejam ser felizes e evitar os sofrimentos — se tomarmos essa motivação como referencial, teremos um instrumento seguro para avaliar nossas ações cotidianas. Reconhecendo com profundidade e sabedoria o que de fato estamos fazendo e a forma de ação que estamos usando, poderemos nos direcionar para agir como geradores de equilíbrio e felicidade.”
— Lama Padma Samten
Se olhamos para o que as pessoas estão fazendo da vida, parece que os interesses não coincidem e que andamos em direções diferentes, variáveis e até conflitantes. Mas é possível enxergar uma motivação comum permeando pelo caos, uma aspiração tão essencial que fica quase escondida: queremos todos encontrar e estabilizar uma experiência de satisfação, ter sensação de propósito e respirar aliviados; e num mesmo movimento evitar o desconforto, a insegurança, a privação. É nosso compromisso mais original. Como um movimento começa? Sentimos frio, fome, cansaço, e buscamos dar jeito. Sentimos carência, tédio, inadequação, tristeza, raiva, ciúmes, insegurança, solidão, e buscamos dar jeito. É escapando ao sofrimento que alguém se coça ou se casa.
“Nós nos ocupamos com a busca da felicidade e a cessação do sofrimento mais do que com qualquer outra atividade, profissão ou lazer, empregando inúmeros métodos e objetos. É para isso que temos elevadores, laptops, pilhas recarregáveis, lava-louças, torradeiras reguláveis, cortadores à pilha para os pelos do nariz, privadas com assento aquecido, novocaína, telefones celulares, viagra, carpetes e forrações…”
— Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche
A arte boa é uma ação boa: com potencial eudaimônico, de inspirar, propiciar, convidar para vidas melhores, mais amplas, inclusivas, saudáveis, criativas, compassivas. A arte pela arte, conceitualmente arbitrária, tipo feita-porque-sim, pelo mero comércio, entretenimento ou distração, essa eu proponho botar em cheque — não censurar ou negar, mas perguntar claramente a que veio: por que lhe devo dar atenção, tempo e vida?
Destrinchar os infinitos meandros teóricos e práticos desse problema ainda é responsabilidade inevitável de cada um, em cada caso. Nenhuma atividade humana escapa, nem a arte.
Boa, não boazinha
“Para se criar uma sociedade iluminada, é preciso mudar a cultura, e para mudar a cultura, é preciso mudar a arte. E para mudar a arte, é preciso mudar os princípios nos quais ela é baseada.”
— Chögyam Trungpa Rinpoche
Curioso notar que quando pensamos “bom” ou “compassivo” o que vem à mente é alguma coisa meio carola, moralista, certinha, higienizada, apolínea. E não é o caso, a cara da compaixão não é boazinha, é a cara provisória que precisar e funcionar.
Para a saúde da própria arte, é necessária a proliferação dos movimentos que contestam as tendências e estilos correntes. Para a saúde das pessoas, são necessários artistas capazes de ler a cultura e a realidade, de ter compaixão e habilidades técnicas, estéticas e de linguagem para pacificar, enriquecer, magnetizar, destruir — intervir e oferecer o que quer que seja necessário.
Nenhuma obra, não importa seu preço, originalidade ou provenance, nenhum movimento, estilo, refinamento técnico ou estético é critério suficiente, porque nada disso é absolutamente bom, em si, sempre, para todos. O que é remédio agora, vira veneno depois; o que ajuda uns, atrapalha outros.
Mas um referencial não muda, e portanto é sempre seguro: há ou não há potencial eudaimônico. Esse princípio é necessário para todos, mas é especialmente necessário para quem for capaz de mobilizar as pessoas emocionalmente e de transformar a cultura. E não é porque alguém está dizendo, é porque cada um viu que há um sofrimento imenso no mundo e que a felicidade genuína é possível.
“Para mim, ao adquirir arte, o que você está realmente obtendo é a energia dessa arte. Então, eu sinto ter uma responsabilidade muito grande, de fazer as pessoas exuberantes, felizes, saudáveis. A arte é realmente maravilhosa nesse sentido, do que ela pode fazer — porque ela está na sua sala, está vivendo com você. Portanto, seja cuidadoso com o que adquire, porque você está recebendo aquilo que você é.”
— Mayumi Oda
Arte e florescimento humano
Alain de Botton critica duas noções importantes que temos hoje a respeito da prática artística:
“Há duas ideias realmente ruins que pairam sobre o mundo moderno e que inibem a nossa capacidade de extrair força da arte. A primeira é que a arte deveria ser feita pela arte. Uma ideia ridícula. A ideia de que a arte deveria viver em uma bolha hermética e não deveria fazer nada a respeito deste mundo problemático. Eu não poderia discordar mais. A outra coisa em que acreditamos é que a arte não deveria explicar a si mesma, que artistas não deveriam dizer a que vieram, porque dizer isso seria destruir a magia - acharíamos tudo muito fácil. É por causa disso que um sentimento muito comum que temos ao visitar museus ou galerias, vamos admitir, é “eu não estou entendendo isso”. Mas se somos pessoas sérias, não vamos admitir. Essa sensação de que há um enigma é fundamental à arte contemporânea.
As religiões tem uma atitude bem mais sã em relação à arte. Eles não tem problemas em nos dizer para que ela serve. Arte serve para duas coisas em todas as fés maiores: primeiro, ela tenta lembrar você do que há para ser amado, segundo, ela tenta lembrar você do que há para ser temido e detestado. E é isso que é a arte, um encontro visceral com as ideias mais importantes da sua fé. Então, quando você caminha por uma igreja ou mesquita, o que você está sorvendo com seus sentidos são verdades que de outra forma chegariam a você pela mente. Essencialmente isso é propaganda. Rembrandt é um propagandista do ponto de vista cristão. Agora, a palavra propaganda soa alarmes - pensamos em Hitler, Stalin –, mas não é necessário. A propaganda é uma forma de ser didático a respeito de alguma coisa. Se essa coisa é boa, não há problema algum. Minha visão é que museus e galerias de arte deveriam aprender um pouco com as religiões.
Se eu fosse um curador, faria uma sala para o amor, uma sala para a generosidade etc. Todas as obras de arte estão nos falando sobre coisas, e se fôssemos capazes de arrumar os espaços, poderíamos usar as obras de arte para fortalecer essas ideias na mente, e a arte nos seria muito mais útil. A arte tomaria para si o dever que costumava ter e que negligenciamos por causa de ideias mal fundadas. A arte deveria ser uma das ferramentas com as quais melhoramos a nossa sociedade.”
Alan Moore também bate nesse ponto:
“Creio que os artistas e escritores têm-se permitido serem vendidos, levados pela maré. Estão aceitando a crença dominante de que a arte e a escrita são apenas formas de entretenimento. Não são vistas como forças transformadoras que podem mudar um ser humano e uma sociedade. São vistas simplesmente como entretenimento, coisas com as quais podemos ocupar 20 minutos ou meia hora enquanto esperamos para morrer. Não é o trabalho do artista dar ao público o que o público quer. Se o público soubesse o que precisa, eles não seriam o público, eles seriam o artista. É o trabalho do artista dar ao público o que ele precisa.”
Para quem tem interesse em aprofundar, estes são alguns livros que sugiro.