Hitler reage à não-dualidade

por Gustavo Gitti

Esses dias encontramos mais uma paródia dessa cena do filme Der Untergang (A queda, 2005), do diretor alemão Oliver Hirschbiegel. A legenda feita por Leo Gura tinha alguns problemas, então me juntei a Daniel Cunha (que também editou o vídeo) e Stela Santin para criar uma legenda em português inspirada nessa brincadeira: e se Hitler fosse apresentado à natureza da realidade?

Notas sobre a legenda

Deixamos algumas indicações a partir de comentários sobre a legenda.

A diferença entre mapa (nossos conceitos, teorias, histórias, rótulos, descrições, crenças) e território (vida, interdependência, natureza não agarrável, dinâmica, aberta, ilusória, onírica da realidade) vem dos ensinamentos da Lama Elizabeth Mattis Namgyel nos livros O poder de uma pergunta aberta e principalmente em A lógica da fé (você pode adquirir ambos no site da Lúcida Letra). Estudamos esses dois livros em comunidade e todos os vídeos e materiais estão disponíveis para quem deseja participar do lugar. Como vimos na semana 6 do estudo da A lógica da fé, quem cunhou a frase “O mapa não é o território” foi o engenheiro, matemático e filósofo polonês Alfred Korzybski, conhecido pelo desenvolvimento da teoria da semântica geral. Essa ideia muitas vezes tem usos superficiais, mas como é de fácil entendimento, Lama Elizabeth muitas vezes toma essa abordagem para introduzir a visão do Caminho do Meio. Explorei essa abordagem brevemente no texto “Aparece, mas não está lá”.

A frase “Tendo visto isso, não há retorno” é uma citação desse trecho maravilhoso do capítulo final de A lógica da fé:

“Eu não sou uma nem sou duas; eu não sou a mesma coisa que, nem estou separada da natureza insondável da expressão interdependente. Eu não estou totalmente no comando, ainda que cada coisa que eu faça importe. Não sou nem grande nem pequena. Eu sou, entretanto, parte da grande natureza da contingência infinita, e, nos momentos em que incorporo essa sabedoria, vivo em graça. Mesmo nos momentos em que minhas tendências habituais me dominam e eu deixo a aparência das coisas ofuscar sua natureza, eu tenho fé na natureza da interdependência e no caminho de pratityasamutpada. Tendo visto isso, não há retorno. Isso se tornou uma verdade óbvia.

—Elizabeth Mattis Namgyel

O trecho sobre o eurocentrismo veio dessa fala maravilhosa do professor Alan Wallace que transcrevemos aqui: “O maior ponto cego da ciência moderna”. Vale ler tudo, segue o começo:

“Dentre todas as pessoas que mencionei, todos são físicos respeitáveis, talvez até mesmo ilustres, e todos brancos, do sexo masculino, pertencentes à tradição dominante do século XX. Mas o que tenho notado nas minhas leituras dos últimos 30 anos, mais ou menos, desde que era um estudante em Amherst, é o quanto esse discurso revela uma cegueira na ciência moderna em geral (e não estou acusando esta ou aquela pessoa, é só uma generalização, avalie se é verdadeira).

Essa cegueira diz respeito a quaisquer insights possíveis a respeito da natureza fundamental da realidade, sobre a natureza subjacente da realidade, de todas as grandes civilizações asiáticas nos últimos 5000 anos. China, Japão, Índia, Sudeste Asiático, Tibete… Onde conseguimos encontrar qualquer referência a descobertas feitas na Ásia que possam ser relevantes há 5000 anos e nunca são divulgadas? Isso sem falar nas culturas indígenas por toda a América do Sul, África, Austrália, e assim por diante. Em outras palavras, esta é uma fatia muito estreita da humanidade que parece se considerar o centro do universo. Então as questões surgem, nós as ouvimos e,… Há vida inteligente em algum outro lugar do universo? E a resposta é: sim, na Ásia! É realmente uma negligência. Eu entenderia se isso ocorresse no século XIX, mas ignorar civilizações inteiras no século XXI…

Estamos cegos de outra forma: temos essa maravilhosa variedade, todos os diversos ramos da ciência moderna que, para todo mundo, é descrito como tendo desenvolvido métodos sofisticados, rigorosos e precisos de medição e observação do que se está tentando entender. Certo? Com uma exceção. Sabe qual é? A mente.

—Alan Wallace

Sobre a fala da ciência e do cérebro, a mais problemática da legenda que fizemos, confessamos que por preguiça não ficamos mais tempo pensando em outra possibilidade — apenas traduzimos do vídeo em inglês. O mais preciso, talvez não tão engraçado e não em sync com a fala em alemão, seria dizer que a mente não é o cérebro e que a ciência se dá no mundo relativo da experiência, sendo que qualquer imputação absoluta não se sustenta. Na verdade, toda a atividade científica e toda a nossa experiência sensorial, inseparável do funcionamento do cérebro, em nenhum momento são negadas pelos ensinamentos da vacuidade. Refutar o materialismo e o fisicalismo não é negar o método científico, mas enriquecê-lo, usá-lo em todo o seu vigor. A interpretação niilista (“nada existe, então?”) é talvez o principal engano de quem ouve algo sobre a vacuidade pela primeira vez. E é também o ponto mais enfatizado pelos grandes professores e professoras: nada é negado ou rejeitado, apenas visto como relativo e interdependente – veja esse ensinamento curtinho de Thich Nhat Hanh: “Vacuidade não é nada”. Lama Elizabeth diz, por exemplo:

“É porque tudo se apoia que todas as coisas são vazias de características que lhes definam.” […] “É porque tudo é vazio ou livre de verdades definitivas, que o mundo da expressão infinita pode surgir, desimpedido.”

Elizabeth Mattis Namgyel

Francisco Varela usava uma expressão maravilhosa para evitar os extremos do niilismo e do substancialismo: “objetividade entre parênteses”. As coisas podem ser conhecidas, há ciência boa e há ciência ruim, mas a melhor das teorias não aponta para uma realidade independente, externa, absoluta, não relacional. Se só enfatizamos o “entre parênteses”, podemos estimular visões negacionistas, por exemplo. Se só enfatizamos o “objetividade”, alimentamos dogmas e fundamentalismos. Para uma obra-prima sobre ciências cognitivas a relação entre corpo, mente e realidade, não deixem de ler seu livro A mente incorporada, que está por trás da abordagem tão rica que vemos hoje seguir no Instituto Mind&Life, fundado por Sua Santidade o Dalai Lama, Adam Engle e o próprio Francisco Varela.

Sobre a relação entre verdade relativa e verdade absoluta, recomendamos esses ensinamentos de Dzongsar Khyentse Rinpoche. Deixamos aqui uma fala curtinha de Robert Thurman:

“Vacuidade não significa que as coisas não existem. Vacuidade não é o nada. O que a vacuidade significa é que todas as coisas relativas são vazias de qualquer elemento não relativo [não relacional, não dependente]. Vazias do que podemos chamar de realidade intrínseca ou de identidade intrínseca [independente, autoexistente, inerente]. Se algo é absoluto, você não consegue relacionar, porque o absoluto é o oposto de relativo, certo?”

Robert Thurman (nessa palestra maravilhosa que ofereceu para o pessoal do Google)

Sobre a imagem do arco-íris para falar da união entre experiência e insubstancialidade, há diversas fontes que remontam ao próprio Buda. Recomendamos novamente a leitura de A lógica da fé, da Lama Elizabeth Mattis Namgyel. Esse texto de um praticante, Eduardo Pinheiro, é esclarecedor também.

Sobre Hitler não ser quem ele pensa que é, vale ler Como saber quem você é, de Sua Santidade o Dalai Lama. Se puder, leia o original: How to see yourself as you really are.

Sobre a relação entre reconhecimento da interdependência e redução das aflições mentais, Sua Santidade o Dalai Lama:

“A visão da interdependência leva a uma grande abertura da mente. Em geral, ao invés de percebermos que o que experienciamos surge de uma complicada rede de causas, tendemos a atribuir a felicidade ou tristeza, por exemplo, a causas singulares e individuais. Mas se esse fosse o caso, assim que entrássemos em contato com o que consideramos ser bom, nós ficaríamos automaticamente felizes e, inversamente, no caso das coisas ruins, ficaríamos tristes. As causas da alegria e tristeza seriam fáceis de serem identificadas e direcionadas. Tudo seria muito simples, e haveria uma boa razão para nossa raiva e apego. Quando, por outro lado, consideramos que tudo que experienciamos resulta de uma complexa interação de causas e condições, descobrimos que não há algo singular para desejar ou ressentir, e é mais difícil para as aflições do apego ou da raiva surgirem. Dessa forma, a visão de interdependência deixa nossas mentes mais relaxadas e abertas.”

Sua Santidade o Dalai Lama (do livro “For the Benefit of All Beings: A Commentary on the Way of the Bodhisattva”)

Sobre bodhichitta, a mente voltada para a iluminação de todos os seres, sugerimos se aproximar e ouvir grandes seres que manifestam essa mente. Como estamos aqui num post na internet, deixamos esse capítulo do último livro de Pema Chödrön e esse vídeo de Mingyur Rinpoche (ative a legenda em pt-br).

Desfrute!