Supremacia branca = Mãe da crise climática (Por Sensei Kritee Kanko)

por Geovana Colzani

Este é um texto de Sensei Kritee Kanko escrito em março de 2020 com contribuições do grupo de direção Boulder Ecodharma Sangha e do círculo Frativista Sagrado. A tradução é da querida Larissa Lemos e revisão de Geovana Colzani. Sensei Kanko abriu o intensivo SIM deste ano: olugar.org/sim

* * *

crise climática
Imagem de Joe Webb

Eu sou cientista do clima. Eu sei que, no nível da física, as emissões de dióxido de carbono e outros gases que aprisionam o calor causaram nossa atual crise climática.

(Respire. Essa parte foi fácil.)

Eu também sou budista. Tradições indígenas e orientais, incluindo o budismo, são acuradas em apontar que, em um nível espiritual, nós não somos somente interconectados ou interdependentes, nós “inter-somos”, uma palavra cunhada pelo professor budista Thich Nhat Hanh para descrever “Você sou eu e eu sou você.”. Quando alguém está nesse estado de consciência do “Inter-ser”, este alguém não pode machucar outro ser ou poluir as águas e os solos. Não há um “outro” – há apenas “Um corpo”. Então, de um ponto de vista espiritual, nosso senso de delusão de separação dos outros, de outras espécies e da “natureza” é a causa raiz da crise climática.

(Você é lindo/a/e. Obrigada por ler isso. Respire fundo novamente.)

O ponto que quero destacar aqui é que, em um nível cultural, a supremacia branca é a mãe da crise climática. Algumas pessoas podem não se sentir confortáveis com essa analogia; elas podem argumentar que a fonte da crise climática é a oligarquia que se beneficia de nos dividir de formas desumanizadoras com base em raça, casta e religião, e que a supremacia branca é apenas uma máquina que está abastecendo a crise climática. Independentemente de analogias ou metáforas, pessoas brancas precisam confrontar o racismo em todos os níveis.

(Como seu corpo se sente agora mesmo? Essa linha de pensamento é nova para você? É muito pesada? Respirações profundas farão com que se sinta um pouco melhor sobre isso.)

Não, a supremacia branca não é sobre pessoas brancas individualmente e suas intenções, palavras/epítetos ou ações racistas individuais. Não é sobre amantes de armas que, claramente, odeiam BIPOC (sigla para Black, Indigenous and People of Color, ou Negros, Indígenas e Pessoas não-brancas) e parecem não hesitar em prejudicar BIPOC. A supremacia branca é mais sobre nosso sistema geral político, cultural e econômico que impacta a capacidade de pessoas não-brancas acessarem comidas nutritivas, serviços de saúde, casas alugadas ou próprias longe da poluição, empregos, assim como o tratamento recebido pela polícia. A supremacia branca é a dominância da cultura branca. O colonialismo europeu, ou a tomada de outros continentes e culturas indígenas, é um resultado direto da supremacia branca. Você precisa da supremacia branca para justificar as guerras e a violência lenta trazida às pessoas não-brancas e aos ecossistemas com os quais elas viviam em harmonia, até então.

(Qual é a cor das paredes do seu quarto? Pode nomeá-las e respirar de novo. Independentemente da sua identidade, eu me importo com você. Nosso futuro está entrelaçado um ao outro.)

Aqui está o núcleo do meu argumento: a supremacia branca (algumas vezes chamada de supremacia europeia) sistematicamente tem ameaçado a cultura de negros, indígenas e outras pessoas não-brancas (BIPOC): as mesmas culturas que souberam como honrar a verdade do “Inter-Ser” em suas vidas diárias e como viver em harmonia com a terra e todos os seres em um ecossistema. Quando os humanos esquecem como honrar a interdependência e o Inter-Ser, eles sucumbem em um insustentável e traumatizante hiperindividualismo (por exemplo, eu só preciso cuidar de mim mesmo).

O uso da palavra “mãe” pode ser dura para alguns, mas talvez esse seja meu ponto: a supremacia branca vem arrulhando, embalando, alimentando, nutrindo, cuidando e defendendo meticulosamente a destruição ecológica por meio do dano sistêmico que trouxe ao povo da maioria global (BIPOC).

Outra forma de dizer isso é que a ganância desregulada das corporações multinacionais de petróleo e gás, muitas vezes apontada como o motivo da emergência climática, está enraizada em e é resultado de séculos de minimização, ridicularização e guerras trazidas às culturas BIPOC. O sistema econômico vigente foi entregue pela supremacia branca. Esse sistema econômico desequilibrado que ignora o bem-estar dos humanos, dos animais não-humanos, e do mundo natural em favor do maior crescimento econômico (PIB e todos os indicadores do capitalismo neoliberal, etc.) está enraizado no deslocamento e na extinção das culturas não-brancas. A demanda para que todo humano trabalhe perfeita e infinitamente como uma máquina com anonimato impessoal (o oposto de uma conexão afetiva) para produzir mais valor para a economia recebendo um salário ou ajuda “menos-que-humana” também é um resultado da supremacia branca.

A mentalidade de dominação que escravizou, ridicularizou, minimizou, silenciou e tornou invisíveis os corpos e/ou as mentes das BIPOC é necessária para cortar árvores, a forma como tratamos os animais, destruindo ou poluindo os ecossistemas, a extinção dos insetos, pássaros e outras vidas selvagens, e a crise climática.

(Se você ainda está lendo isso, por favor, se lembre de continuar respirando profundamente, tendo especialmente longas expirações.)

Você pode se perguntar: “E o papel da China e de outros países em desenvolvimento inabitados por pessoas não-brancas na contribuição da emergência climática?”. Sim, a China tem mais emissões anuais de gases de efeito estufa do que os EUA e a Europa hoje em dia. Entretanto, ambas emissões por pessoa e as emissões cumulativas ao longo do último século oriundas de países em desenvolvimento são minúsculas quando comparadas às emissões cumulativas dos EUA e da Europa (veja dados nessa palestra sobre mitos acerca do clima). É importante nos relembrar que pessoas brancas não sofrem exclusivamente com a supremacia branca. Indivíduos e culturas BIPOC estão se tornando, cada vez mais, hiperindividualistas devido à vergonha e ao trauma do racismo internalizado. Nós precisamos curar e liberar tanto as mentes das pessoas brancas quanto das BIPOC dos impactos do colonialismo.

(A supremacia branca machuca a todos nós, a despeito da cor de nossa pele. Sim, você e eu. Isso pode matar pessoas não-brancas, mas mata os corações e as almas das pessoas brancas.)

Negros, indígenas e outras pessoas não-brancas (BIPOC) do mundo todo estão na linha de frente da nossa crise ecológica, mesmo quando estão “comprando” a supremacia branca: eles vivem próximos aos lugares mais poluídos desse país e, frequentemente, lutam contra a tirania por si só, sem ajuda do mundo privilegiado. Eles sofrem mais por causa da crise climática e ambiental quando, coletivamente, eles contribuíram muito menos para os níveis de poluição. Eles também têm ensinamentos ancestrais que nós precisamos usar para encarar nosso luto, caos e traumas coletivos. Essas comunidades BIPOC na linha de frente requisitaram a devolução da terra e de dinheiro como reparações na cura do trauma racial e dos impactos do colonialismo. Esse pedido não é “política identitária”. Entender e honrar esse pedido pode não acontecer se ambientalistas brancos envolvidos no movimento climático pensam que engajar com o racismo é “uma questão de escolha”. Conversar sobre a cura racial de traumas passados é sistematicamente necessário se nós queremos curar as feridas históricas e atuais entre as BIPOC assim como entre as pessoas brancas E construir o poder que o movimento ambiental precisa.

(Quando foi a última vez que você tomou água ou alongou seu corpo? Vamos todos respirar fundo novamente, por favor.)

Quando algumas organizações no movimento climático dizem que seu foco é mitigar a crise climática e alguma outra entidade é que deve trabalhar sobre as questões da justiça racial, eles apagam a verdade das pessoas não-brancas nesse país e a maioria global ao redor do mundo. É racista dizer: “A raça nos divide – então vamos focar no que nos une.” Nós temos que projetar nosso movimento de forma a conseguir, simultaneamente, resolver as crises do clima e de justiça racial. Nós não acreditamos que qualquer movimento do clima pode ter “um único foco”. Um especialista de foco único no coração é treinado na medicina básica por anos antes de ser permitido conduzir uma cirurgia em um coração humano. Todo clínico tem que estudar a complexidade do corpo humano inteiro antes de se tornar um expert no tratamento de um órgão. Assim como ninguém conduz uma cirurgia cardíaca sem entender como funciona a circulação sanguínea em artérias e veias, ninguém pode trabalhar na emergência climática sem reconhecer e encarar o racismo e a supremacia branca.

(Quase lá. Eu gostaria de cantar pra mim mesma para acalmar meus nervos. Ou eu respiro profundamente. De novo e de novo.)

Um movimento climático global sábio, compassivo e saudável vai se alinhar com as preocupações das comunidades BIPOC de linha de frente e olhar para a supremacia branca dentro do movimento. Ninguém pode lidar com a emergência climática sem encarar o racismo de cabeça erguida. Se você ignora a supremacia branca, você ignora a máquina fundamental que facilita a emergência climática. Você esquece do colonialismo, você esquece do que nos trouxe a esse ponto de uma sexta extinção em massa em curso. No caso de não ser tão óbvio, todos os sistemas de opressão (incluindo o patriarcado e a supremacia Humana ou especismo) frequentemente se manifestam juntos, reforçam a si mesmos e precisam ser enfrentados simultaneamente.

Eu gostaria de terminar enfatizando que “compostar” o trauma (veja esse artigo e esse vídeo) para as BIPOC e pessoas brancas, além de estar inserido em uma comunidade sã, usando o que eu chamo de “poder de pertencer” para estabelecer três pilares de sanidade, é essencial para a cura racial e ecológica. Nós também precisamos ter responsabilidade para com as pessoas de dentro e fora do nosso círculo de entes queridos. Nossa situação climática é uma emergência, mas não pode ser resolvida com uma mentalidade de pressa. Nós precisamos ser resolutos, mas não apressados. A busca por hipereficiência foi o que nos trouxe ao estado traumatizado que estamos agora. Como Dr. Kyle Powys Whyte diz: “Quando você está lidando com uma população não-nativa que está tentando salvar o mundo de hoje em dia… urgentemente, eles não estão reconhecendo que há um problema com o mundo que eles estão tentando salvar. Na realidade, eles estão tentando salvar… a distopia.”

A única e mais importante coisa que podemos fazer para encarar a emergência climática é, corajosamente, encarar a supremacia branca dentro e em torno de nós – será um processo longo e confuso, mas não há nada menos que isso a fazer.

Eu vim a entender profundamente a relação da supremacia branca com a crise climática por meio de muitos autores/pensadores indígenas e negros, incluindo, mas não limitado a, Robin Wall Kimmerer, Kyle Powys Whyte, Rev. Lynice Pinkard, Mary Heglar, Asia Dorsey, Adam Elliott-Cooper e Anthony Rogers-Wright. Recentemente também fui profundamente influenciada pelo trabalho de Ian Haney Lopez.

Aqui está uma lista de leitura sobre como a crise climática e o racismo estão em uma “simbiose sinistra” – uma frase que ouvi pela primeira vez em uma palestra de Anthony Rogers-Wright.

Participe da nossa comunidade online: olugar.org