O que perdemos em nome do conforto?

por Polliana Zocche

conforto
Chimborazo, a montanha com o cume mais distante do centro da Terra. Foto: Alamy

Ontem, enquanto andava pelo centro de Santiago usando 3 pares de meias e botas de borracha (bom contra chuva, ruim para o frio!) sentia meus pés congelarem e meu corpo todo ir resfriando aos poucos. Logo, tremer um pouquinho era uma boa coisa a se fazer, me ajudava a esquentar o que ainda não estava gelado. Em meio a essas sensações do corpo me lembrei da parte do livro “A invenção da natureza”, de Andrea Wulf, que conta sobre a vida do explorador e naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769–1859), onde comenta das expedições que fez nas Cordilheiras dos Andes durante o século XIX. Um trecho:

“Ao atingir a altitude de 4.754 metros, os carregadores se recusaram a seguir adiante. Humboldt, Bonpland e Montúfar dividiram entre si os instrumentos e continuaram por conta própria. A névoa envolvia o Chimborazo. Logo os homens estavam rastejando ao longo de um alto espinhaço que se estreitava a ponto de formar uma borda de perigosos cinco centímetros, com íngremes penhascos à direita e à esquerda — de maneira apropriada, os espanhóis chamavam esse espinhaço de cuchilla, ou “gume de faca”. Resoluto, Humboldt olhava para a frente. Em nada ajudava o fato de que as mãos e os pés dos homens estavam congelados, e, para piorar, o pé de Humboldt, que ele havia ferido durante uma escalada anterior, estava infeccionado. Àquela altitude, cada passo era pesado feito chumbo. Nauseados e tontos por causa do mal das montanhas, com olhos vermelhos em consequência da dilatação de vasos e as gengivas sangrando, os homens sofriam uma constante vertigem que, Humboldt mais tarde admitira, “era muito perigosa”, dada a situação em que nos encontrávamos.”


Desde o conforto das casas quentinhas ou ambientes com aquecimento artificial, vocês conseguem imaginar como é possível alguém subir uma montanha nevada de mais de 5 mil metros de altitude com os pés desnudos? E o quanto nossa busca por conforto vai estreitando o mundo de possibilidades em que o corpo humano é capaz de se acomodar?


Ao ver o vídeo do Richard Louv falando sobre o que se chama hoje de Transtorno do déficit de natureza (que pode ser dito no popular como, falta de mato mesmo). Estamos criando ambientes tão estéreis, desinfectados, limpos de qualquer tipo de vida que as crianças não entram mais em contato com o que é natural. Reduzimos o mundo de possibilidades de uso de seus corpos para o império do sentido da visão e, parcamente, para o sentido da audição enquanto encaramos telas multicoloridas e suportamos apenas o toque em superfícies deslizantes de um touchscreen. Como Louv diz, as crianças estão menos vivas! Ao mesmo tempo elas estão hiper-estimuladas, com uma carga de energia enorme, natural do momento em que estão vivendo, de exploração do mundo, de como os sons são produzidos ao tocar um objeto no outro, dos próprios sons que emite ao falar, das sensações que cada textura provoca, da descoberta da gravidade ao jogar inúmeras vezes algo no chão… Toda essa energia, essa vontade de descobrir o mundo, que não é gasta dentro das quatro paredes que as cercam, criam diagnósticos e tratamentos para coisas como Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. E nos fazem pensar que medicar a hiperatividade é a solução (Alan Wallace deu uma resposta bem completa sobre o que ele pensa da medicalização da infância neste vídeo aqui). Richard Louv, entre muitas outras pessoas, constata que o que nos falta é voltar ao contato íntimo com a Terra e com nós mesmos.


Quantos de vocês que tem a minha idade, ou mais ou menos, lembram como foi a infância? Como era o ambiente onde brincavam? Qual era o seu nível de contato com a terra, com a mata, com outros bichos, com os riachos e banhados da cidade? Quantas fogueiras acendeu? Quantas vezes levantou pipa pelas ruas? Em quantas árvores subiu? E as goiabeiras que subia e sua maior preocupação não era se a goiaba estava ou não contaminada por agrotóxicos, mas sim se tinha coró dentro ou não?!


Como chegamos ao ponto de acreditar que nosso distanciamento do que é natural, do que está vivo, do que compõe nossa existência e nos sustenta é um caminho? E que os graus a mais que aquecem e ameaçam a vida no planeta não é assunto nosso?


Enquanto andava com os pés gelados até chegar a casa aquecida que me acolheu ontem, ficava claro que aquela sensação não era desconfortável em si mesma. Ela também era um produto do estreitamento da minha capacidade de acomodar as diferentes condições da realidade, a baixa temperatura dessa cidade aos pés da Cordilheira dos Andes. O quanto estamos deixando de viver em nome do idolatrado conforto?

Com pouquíssimo conforto, mas muita curiosidade onde podemos chegar? Arte de Friedrich Georg Weitsch.

Um outro trecho do livro sobre as expedições de Humboldt pode das algumas pistas do que estamos perdendo:

“Após uma hora de traiçoeira escalada, a cordilheira tornou-se um pouco menos íngreme, mas agora as pedras pontiagudas haviam rasgado os sapatos dos homens, cujos pés começaram a sangrar. De súbito, a bruma se dissipou, revelando o pico branco do Chimborazo, reluzindo ao sol, a pouco mais de trezentos metros acima deles — mas eles viram também que o estreito espinhaço havia chegado ao fim. Agora estavam frente a frente com uma imensa fenda que se abria bem diante de seus olhos. Para contorná-la, seria preciso atravessar um campo coberto por uma profunda camada de neve, mas eram treze horas e o sol derretera a gélida crosta que cobria a neve. Quando Montúfar tentou, com extremo cuidado, caminhar sobre o gelo, afundou tanto que desapareceu por completo. A travessia era impossível. Durante a pausa que fizeram, Humboldt mais uma vez pegou o barômetro e mediu a altitude de 5.917 metros. Embora não tivessem chegado ao cume, a sensação era de que estavam no topo do mundo. Ninguém jamais havia chegado àquela altitude — nem mesmo os balonistas na Europa. Fitando lá de cima as encostas do Chimborazo e as cordilheiras ao longe, tudo que Humboldt vira nos anos anteriores fazia sentido. Seu irmão Wilhelm acreditava que a mente de Alexander era feita para “conectar ideias, detectar sequências de coisas”. Naquele dia, de pé no Chimborazo, Humboldt absorveu tudo que se estendia à sua frente enquanto sua mente voltava no tempo e acessava todas as plantas e formações rochosas que ele tinha visto e todas as medições que fizera nos Alpes, nos Pirineus e em Tenerife. Tudo que ele já havia observado se encaixou e tornou-se claro. A natureza, Humboldt atinou, era uma teia de vida e força globais. Mais tarde, um colega afirmou que Humboldt foi o primeiro a compreender que tudo estava entretecido como que por “mil fios”. Essa nova ideia de natureza mudaria a maneira como as pessoas entenderiam o mundo. Humboldt ficou impressionado com “essa semelhança que descobrimos e reconhecemos em climas os mais distantes uns dos outros”. Nos Andes, por exemplo, crescia um musgo que fez Humboldt se lembrar das florestas do norte da Alemanha, a milhares de quilômetros de distância. Nas montanhas nos arredores de Caracas ele tinha examinado plantas parecidas com rododendros — roseiras alpinas, como ele as chamou –, que eram como as que havia nos Alpes suíços. Mais tarde, no México, encontraria pinheiros, ciprestes e carvalhos semelhantes às arvores que cresciam no Canadá. Plantas alpinas podiam ser encontradas na Suíça, Lapônia e nos Andes. Tudo estava interligado.”


Humboldt não foi uma das primeiras pessoas a observar que tudo estava interligado. Ele pode ter sido um dos primeiros ocidentais a perceber isso, mas tradições orientais antigas e os povos originários de distintas partes do mundo já sabiam disso e viviam desde essa perspectiva da realidade. Só que somos seres de complicados, imersos em vieses onde estamos inclinados a dar valor à opinião de pessoas do sexo masculino, brancas, ocidentais, (principalmente das que se baseiam em medições para comprovar suas teorias). E tudo bem, também é válido quando percebemos que isso acontece (eu caio nessa o tempo todo).

Independente de quem está levantando a bola, o ponto é que o não reconhecimento dessa interconexão que temos com a Terra em que vivemos, que é o que somos, está fazendo a gente perder o espetáculo da vida disponível a todo momento, para todos.


Brota em vocês também uma curiosidade de reconhecer aquilo que estamos perdendo nas cidades de concreto e poluição?