A elegante arte do fracasso (por Pema Chödrön)
Deixamos abaixo um trechinho do livro Acolher o indesejável, que estudamos em comunidade em 2023! Junte-se a nós nos nossos próximos movimentos!
Nosso hábito humano natural é a esperança contínua por uma vida sem nada além de felicidade e prazer. Estamos sempre buscando uma maneira de não sentir a parte desagradável. Contudo, só embarcaremos de corpo e alma num caminho genuinamente espiritual quando começarmos a ter a sensação assombrosa de que esse sonho nunca se realizará. Sem ter uma noção dessa realidade, dificilmente nos abriremos para a totalidade da vida. Pelo contrário, continuaremos seguindo os hábitos que nos mantêm presos a uma ansiedade e insatisfação repetitivas, geração após geração, ao longo do tempo.
O Buda muito falou sobre a importância de trabalhar o próprio ego. Mas o que ele queria dizer com “ego”? Há várias maneiras de falar sobre essa palavra, mas a definição “aquilo que resiste ao que é” particularmente me agrada. O ego luta contra a realidade, contra o final aberto e o movimento natural da vida. Sente-se muito desconfortável com a vulnerabilidade e a ambiguidade, com sua incerteza ao tentar definir as coisas.
Alguns anos atrás, fui convidada a fazer um discurso de formatura na Universidade de Naropa [publicado no livro Fracasse, fracasse de novo, fracasse melhor]. Pensei muito no que poderia dizer a um grupo de pessoas que estava para se lançar ao mundo, sem ter ideia do que iria acontecer. É claro, nenhum de nós sabe o que vai acontecer, mas formar-se numa faculdade pode ser uma transição especialmente desafiadora. Por alguns anos você tem seu campus familiar, sua rotina e estilo de vida estudantil. De re- pente, as coisas não são mais as mesmas e sua vida fica em aberto.
Pensei no quanto dão ênfase ao sucesso, mas muito pouco ao fracasso na educação. Então, decidi falar sobre a elegante arte do fracasso. Como disse aos estudantes, aprender a fracassar nos ajudará mais que qualquer outra coisa na vida – pelos próximos seis meses, pelo próximo ano, pelos próximos dez, vinte anos, pelo tempo que vivermos, até cairmos mortos.
Quando fracassamos – em outras palavras, quando as coisas não saem do jeito que queremos – sentimos nossa vulnerabilidade de uma maneira crua e poderosa. Nosso ego desconfortável tenta escapar dessa crueza. Um dos métodos mais comuns é atribuir a culpa de nosso fracasso a algo externo. Nosso relacionamento não funciona, então culpamos a outra pessoa – ou talvez todo seu gênero. Não conseguimos encontrar um emprego, então culpamos nossos empregadores em potencial, a sociedade como um todo ou a situação política atual. A outra abordagem comum é nos sentirmos mal a nosso respeito e nos rotularmos como fracassados. Seja como for, no fim acabamos sentindo que há algo fundamentalmente errado conosco.
No entanto, há uma terceira via, que é a de nos treinar para sentir o que sentimos, simples assim. Gosto de chamá-la de “manter a crueza da vulnerabilidade dentro do coração”. Quando resistimos ou tentamos escapar “daquilo que é”, geralmente ocorre algum tipo de sinal físico – um aperto ou contração em algum lugar do corpo. Quando você notar esse sinal de resistência, tente ficar com aquele sentimento bruto de desconforto por um instante, o tempo suficiente para que o sistema nervoso comece a se acostumar a ele.
Trungpa Rinpoche disse certa vez que não temos paciência para ficar com sentimentos desconfortáveis nem por três minutos. Quando ouvi aquilo, pensei, “Três minutos! É suficiente para conquistar algum tipo de grande prêmio!”. Hoje em dia, ficar com um desconforto por três segundos já é muito esforço para a maioria das pessoas. Mas, seja qual for a quantidade de tempo, a ideia é ir aumentando aos poucos, no seu próprio ritmo. Continue se deixando ficar ali um pouco mais.
Talvez você tenha uma ideia fixa sobre o que está sentindo, seja temor, raiva ou decepção. Mas, quando se permite ficar presente com o sentimento e o vivencia de modo direto, descobre que não consegue determiná-lo tão facilmente. Aquele “temor” ou “raiva” continua se metamorfoseando e mudando. Mesmo que aquela sensação desagradável o inquiete, mesmo que pareça tão ameaçadora, ao olhar bem, você descobre que não consegue encontrar algo realmente substancial.
O ego quer resolução, quer controlar a impermanência, quer algo seguro e certo ao qual se segurar. Congela o que é fluido, agarra-se ao que está em movimento, tenta escapar da bela verdade da natureza plenamente viva de tudo. Em consequência, nos sentimos insatisfeitos, inquietos, ameaçados. Passamos grande parte do tempo numa gaiola criada por nosso medo do desconforto.
A alternativa a essa luta é treinar para manter a crueza da vulnerabilidade no coração. Através dessa prática, acabamos acostumando o sistema nervoso a relaxar com a verdade, a relaxar com a natureza impermanente, incontrolável das coisas. Podemos lentamente aumentar nossa capacidade de expandir em vez de contrair, de soltar em vez de agarrar.
Toda vez que praticamos manter a crueza da vulnerabilidade no coração, obtemos um pequeno vislumbre das coisas como realmente são. Temos a experiência direta de como nada se mantém igual, nem por um instante. Não conseguimos fazer com que algo fique parado, nem tentando. Tudo que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e pensamos está em constante mudança. Nem mesmo nossas emoções mais pesadas, mais desagradáveis, têm solidez.
A Beyoncé tem um videoclipe da canção “Pretty Hurts” em que ela realmente capta o que é sentir-se um fracasso. Seu sentimento é muito cru e ela põe tudo lá, na canção. Dá para perceber que, mesmo sendo um sucesso estrondoso com tudo andando a seu favor, ela não poderia ter feito a canção se não tivesse tido alguma experiência real de sentir o fracasso. Quando somos capazes de manter a crueza da vulnerabilidade no coração, podemos usar essa energia para criar poesia, prosa, dança, música, canções. Podemos fazer daquilo algo que comunique, que toque as pessoas. Desde o início dos tempos, os artistas fazem isso.
Se nos fecharmos aos nossos sentimentos desagradáveis sem consciência ou curiosidade, se sempre os mascararmos ou tentarmos afugentar nossa vulnerabilidade, o resultado serão vícios variados. Dali sairá agressividade e violência contra os outros – todas as coisas feias. Por outro lado, se conseguirmos ir além da culpabilidade e outros escapes, e simplesmente sentirmos a qualidade nua e crua da nossa vulnerabilidade, entraremos num espaço onde o melhor de nós irá se revelar.
Todos nós temos um imenso potencial e contudo nos fechamos num mundo muito pequeno, amedrontado, baseado no desejo de evitar o desagradável, o doloroso, o inseguro, o imprevisível. Existem vastas e ilimitadas riquezas e maravilhas a serem vividas, se acostumarmos nosso sistema nervoso à realidade incerta, de final aberto, das coisas como elas são.
Como dizia Trungpa Rinpoche:
“Existem sons que você nunca ouviu, odores que nunca sentiu, imagens que nunca viu, pensamentos que nunca teve. O mundo é espantosamente cheio de potencial para uma abertura cada vez maior, para ser experimentado de modo mais e mais amplo.”
Chögyam Trungpa Rinpoche
Quando aprendermos a manter a crueza da vulnerabilidade no coração, seremos capazes de experimentar nossas mentes e corações como sendo tão vastos quanto o universo.
Pema Chödrön em comunidade!
Acolher o indesejável (no original, Welcoming the unwelcome) é um livro forte e delicioso com ensinamentos recentes de Pema Chödrön, uma extraordinária professora que tem 50 anos de prática diária. Cada capítulo é curto e ao mesmo tempo muito íntimo, profundo, prático. Pema Chödrön descreve com um detalhamento espantoso como podemos transformar qualquer emoção e situação difícil em clareza, conexão e ações benéficas aos outros.
Incontáveis pessoas foram apoiadas pelos ensinamentos de Pema Chödrön em momentos de luto, separação, doença, incerteza, frustração e todo tipo de sofrimento. Se você está em um momento positivo da vida, as perspectivas e práticas sugeridas em Acolher o indesejável são igualmente perfeitas para fortalecer sua presença no mundo.
Nosso estudo online e em comunidade do livro da Pema Chödrön aconteceu no ano de 2023 — e tudo segue gravado e disponível para quem chegar agora