Lembrete para mim: bondade é sabedoria
Ao nascer, não sei me alimentar, me mover, me comunicar, me proteger, manter a saúde. Sozinho, não sei como prover a mim mesmo e aos outros das necessidades mais básicas, ter abrigo e alimento apropriado, conforto térmico, saúde e cura. Bem como de afeto, sensação de propósito, de arte, ciência, ética, cultivo da mente, do bom ânimo, de compaixão e sabedoria. Não sei me prover das coisas que não sei que são necessárias. Dependo de que alguém aprenda e ensine, de que alguém plante, ande, fale, cale ou varra o chão.
Dependemos de que este planeta esteja a uma distância específica de uma estrela e outros astros, de que variação da temperatura não oscile mais do que uma pequena margem, de que uma espécie de sapo não se extingua, de que um grupo de políticos decida com inteligência, de que uma hérnia de hiato causada por uma tosse asmática não produza um câncer de esôfago. É útil de vez em quando visualizar a rede inescrutável das circunstâncias e das nossas dependências.
De qual entrelaçamento inimaginável de seres e relações dependo para que minha vida seja possível momento a momento? Refletir sobre isso nos protege da não apreciação e do não alegramento.
Uma doação só é plenamente recebida quando quem a recebeu é capaz de dar sequência a ela. Aqueles que não expressam gratidão ou que não se esforçam por merecer as dádivas concedidas são incapazes de dar sequência ao curso dessas dádivas e de as possuir verdadeiramente.”
—Lewis Hyde
Os méritos da sustentação de nossa própria vida não são nossos ou de alguém, eles são os sinais visíveis da interdependência favorável das circunstâncias e da compaixão veiculada pelo conjunto dos seres do passado até aqui. Ao reconhecermos assim cada condição que se apresenta para nós, elas naturalmente se tornam dádivas, reflexos da bondade fundamental nossa, dos outros e do mundo. Ao não reconhecermos dessa forma, as dádivas não operam em nossa vida, é como se recebêssemos um tesouro e não o usássemos por ignorar seu valor. Não reconhecer é como não ter, não poder desfrutar.
Como é com todas as qualidades impessoais, a bondade já existe, mas é preciso reconhecê-la, praticá-la e oferecê-la adiante: ao olhar a história inteira da nossa vida como sendo a história de como a bondade dos outros nos carregou, tem de surgir a pergunta “E agora? Como retribuir?”. Assim a bondade surge também através de nós.
Então, se a bondade genuína depende de termos essa pergunta bem viva, ela depende de termos profunda clareza cognitiva, de vermos a realidade além das aparências habituais, restritas, além das bolhas pessoais. Quanto maior nossa capacidade de sabedoria, mais ampla e livre de condições é nossa bondade e agradecimento.
Se há sabedoria, é natural e genuíno que vejamos real bondade até mesmo em quem nos apresentou ao sofrimento, e que lhes sejamos até mesmo gratos: sem encontrar o sofrimento, não é possível o surgimento da compaixão, e sem compaixão, a felicidade genuína não é possível — os seres que nos afligem são parte das causas da nossa liberação. Sabedoria é ver isso diretamente, sem intermédio de teorias e negociações internas.
“Ao contemplar as várias maneiras pelas quais você se beneficia das contribuições de inúmeras pessoas, inclusive de estranhos, reconheça que é a presença dos outros que torna sua vida possível. É a presença deles que dá significado à sua existência, e são as realizações deles que contribuem para o seu bem-estar.”
—Geshe Thupten Jinpa
A bondade é apresentada como uma das Quatro Qualidades Incomensuráveis (brahmavihārās), junto da compaixão, da alegria empática e equanimidade. O termo em sânscrito é maitrī, que tem raízes na palavra mitra, que por sua vez significa amizade, boa-vontade em relação aos outros. Bondade é parte das condições que nos permitem andar pelo mundo sem a tensão, raiva e medo que vem de sentir que em algum lugar há inimigos, oponentes, seres inferiores ou superiores, que não desejam nossa felicidade, que merecem ser repelidos ou agredidos.
Bondade é parte da sabedoria que não enxerga inimigos, mas seres que anseiam e buscam de diferentes formas por repouso, abertura e alegria, segurança, acolhimento, sentido na vida. Exatamente como você e eu mesmo.
Somos sempre lembrados pelas grandes mestras e mestres: a sabedoria produz uma felicidade irreversível, e a bondade que vem da sabedoria é possível e plausível para todas as pessoas em quaisquer condições. Basta abrir os olhos para a realidade que se escancara sem parar, agora mesmo.
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Este é um trecho da prática Agradecer, disponível na comunidade do lugar.