Meditando no cinema

por Gustavo Gitti

Estamos na sala do cinema totalmente envolvidos no filme, assim como estamos imersos em nossa vida, levando tudo a sério, nos achando seres reais com problemas concretos. Cada cena nos arrasta para uma emoção específica, uma postura e reação de corpo, uma cadeia de pensamentos e ideias, produzindo tédio ou excitação, assim como somos levados por pessoas, coisas e situações cotidianas.

Na sala do cinema isso dura por cerca de duas horas. Na vida, parece nunca acabar. É possível viver de outro modo?

Distância, respiro, troca de foco

Começamos a não mais acompanhar o conteúdo do filme. Focamos a cadeira da frente, a pipoca, o extintor de incêndio ou o pensamento “Isso aqui é um cinema”. Isso é como uma prática de meditação com foco (na respiração, por exemplo), que nos libera dos fenômenos por distanciamento, mas ainda guarda um equívoco: achamos que o filme é denso e sólido, por isso precisamos nos afastar, nos proteger — ele ainda tem poder sobre nós.

Abertura sem reatividade

Depois, com a estabilidade gerada pela primeira prática, podemos nos sentir confiantes para encarar o conteúdo do filme, mas agora sem responder ou reagir a ele. Assistimos a todas as cenas, ficamos abertos, sem focar nenhum personagem ou local da tela em específico, sem embarcar e ao mesmo tempo sem rejeitar emoções, pensamentos, histórias. Olhamos e não reagimos. Se os impulsos brotam, nós os desobedecemos. Sentamos sem preferências, como uma janela aberta, que não segue, não cumprimenta, não rejeita nem acena para as pessoas que caminham pela rua.

Essas duas práticas podem nos ajudar a desenvolver uma outra relação com as pessoas: aprendemos a não focar o conteúdo das falas, confusões, lógicas e histórias que nos oferecem, não recebemos a sua transmissão. E com isso aumentamos as chances de lidar mais diretamente com a energia da situação, de enxergar e mesmo direcionar a situação de forma inusitada, original. Aprendemos também, naturalmente, a não focar tanto no conteúdo de nossos próprios dramas, o que nos dá chance de começar a superar a estrutura de qualquer complicação.

Uma ação mais livre no mundo

Mas isso ainda pode não ser suficiente. Precisaríamos agir, mas, a partir de qual base?

Surge um terceiro processo: olhamos as cenas e vemos que existe uma tela por trás. Seguimos olhando fenômeno a fenômeno (interno e externo) com esse olhar, com essa perspectiva sobre a base que se expressa no ato, sobre cada cena como que surgindo da tela vazia e ampla por trás.

Repousamos nesse pano de fundo e isso gera uma confiança maior, pois vemos que mesmo quando dá tudo errado no filme, a tela permanece lá — serena, vasta, imóvel. A bomba não explode a tela, só os personagens e objetos do filme. E não só isso, depois se projetam outros e outros filmes sobre a mesma tela, uma sequência de histórias dos mais variados tipos. Há uma natureza criativa e ampla presente na base de todos os fenômenos impermanentes. Diz-se que essa natureza é a fonte de toda a sabedoria e toda a compaixão que os grandes seres humanos manifestam.

A partir do reconhecimento simultâneo da tela e do filme, podemos adivinhar que não somos o personagem e que nossa vida não é nossa história — é como se fôssemos a tela por trás de nós mesmos, somos aquilo que acolhe e produz as identidades e histórias. Com essa clareza, podemos então nos sentar por muito tempo e treinar para conseguir manter essa visão por mais tempo e de modo incorporado, espontâneo, em meio ao cotidiano, sem ter de ficar filosofando ou lembrando disso toda hora.


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