O que aprendi quando vi o SIM (por Silvia Strass)

por Geovana Colzani

“Em gratidão a todas as pessoas que rejeitam o serviço da guerra e agem a serviço da vida.” Souli (Palestina), Helena (Espanha/Palestina), Marwa (Palestina), Lielo (Israel)

Conheci o Sulaiman Khatib em uma dos encontros do SIM deste ano no lugar. Ativista palestino, indicado ao prêmio Nobel da paz pelo trabalho e dedicação de vida pela transformação de conflitos, Souli foi preso na adolescência por atacar dois soldados israelenses. Hoje atua na organização Combatants for peace, a qual fundou coletivamente com judeus, árabes, palestinos e israelenses.

Fui arrebatada pela força de sua coragem e honestidade, e pela forma que cultiva amor e alegria nos olhos, junto da dor em profundas injustiças. Na época, eu experimentava a raiva transbordar em mim, depois das eleições acirradas no Brasil abandonado, pós-pandemia. Trabalhar a raiva diante de tantos absurdos era um assunto que pesquisava em mim mesma, pois vejo que entre outras pessoas acontece o mesmo.

Ativistas são também chamas.

Conversando com o Souli pelo Instagram sobre raiva, mundo interno e ação no mundo, ele me contou sobre esse encontro de ativistas que aconteceria em Tamera, em Portugal.

Eu não conseguia esperar nada de um encontro de ativistas dentro de um espaço que se propõe a estudar paz, na relação viva em comunidade. Tudo o que não esperava era aprender sobre amor. Nada mais óbvio, se parar pra pensar. “Que gente maluca gosta de sonhar”, ouço cantar Gil Luminoso lá no fundo de minha mente.

Tamera é difícil de descrever. Localizada em clima seco e quente, no sul de Portugal, a comunidade foi fundada por jovens intelectuais da esquerda alemã, em 1978. Frustrados com o movimento hippie, enxergando o fascismo crescer, eles estavam dispostos a pesquisar em comunidade: como viver em conjunto, a longo prazo e em confiança?

Pessoalmente, foi uma surpresa experimentar mais de perto uma comunidade que não está apenas focada em bem-estar e cura pessoal, mas explorando profundamente e enxergando a interdependência de política e espiritualidade, amor e poder, prazer e relações, em uma dedicação e defesa radical de paz, amor e sustentabilidade.

Aliás, a personagem principal de Tamera é a comunidade. Toda manhã, por exemplo, há uma pequena reunião no ashram político, onde juntos, moradores e visitantes relembram da motivação de apoiar e celebrar a vida.

Nessa pesquisa coletiva, vive-se a partir de valores muito importantes, sustentados em grupo, por ferramentas ancestrais. Verdade, apoio mútuo e colaboração responsável são os pilares que sustentam relações saudáveis e pacíficas.

Em cada tensão, atrito, celebrações ou conexões, é ali mesmo que as pessoas se tornam lembretes vivos desses valores. A ideia é pesquisar uma estratégia para a paz global, alcançada através de uma rede de Biótopos de Cura na tentativa de responder à questão: como superar a guerra, a crueldade e o medo no mundo?

Formados por grande maioria branca e europeia, o privilégio também entra na equação. É visível que há questões, mas é também inspirador ver como a nova geração é autocrítica e busca a inclusão, está estudando, aberta às mudanças e conectada com o mundo “fora” da comunidade. Tamera é envolvida em projetos mundiais de proteção e cuidados com a água, promove estudos agroflorestais e de biogás, há reflorestamento da área e também apoia diversos projetos sociais incríveis no sul global, inclusive no Brasil, com a Favela da Paz.

O encontro partia desse lugar, em meio a essa pesquisa viva, junto das práticas propostas por quatro facilitadores que residem em Tamera: A’ida, Dara, Frederick e Martin. As pessoas e as histórias eram um curso à parte. A roda misturava as bordas de Portugal, Brasil, Chile, Palestina, Índia, Sudão, Israel, Itália, Estados Unidos, Alemanha, Suíça e Equador. Pessoalmente, era difícil descansar sabendo que tinham histórias para serem ouvidas logo ali. As conexões me nutriam e me ensinavam. 

Marwa, por exemplo, trabalha com educação na terra onde uns chamam de Palestina, outros de Israel. Carrega doçura, silêncio, risada, sabedoria e palavras afiadas. Ela podia até dizer em árabe, mas tamanha era a verdade por dentro que te fazia capaz de compreender.

Helena é uma espanhola que cultiva um coração inteligente e amoroso, e está sempre na linha de frente. Hoje, trabalha em uma organização que cuida das famílias de pessoas assassinadas e desaparecidas no West Bank, e nos campos de refugiados dentro do próprio território da Palestina. Seus olhos azul-turquesa vibravam clareza, profundidade, força, luto e leveza. Um exemplo bonito, atento, sincero e responsável em relação a privilégios. Reconhecia sua voz e risada de longe, mesmo no escuro, onde gosta de dormir com as estrelas e muitas vezes assim fazia nas noites desérticas de Tamera.

Jessica tem esse suave poder de tradução. Ela enxerga voz,  silêncio e presença em profundidade, o movimento das mãos, mente e coração. Tem uma capacidade de abertura incrível para perceber o mundo com amor, consciência e compaixão. É incrivelmente interessada na complexidade humana e está envolvida desde adolescente em muitas causas, principalmente a dos refugiados.

Hadar fala com tanta paixão sobre espiritualidade, ativismo, arte e magia com encantamento, jovialidade, lucidez e fluidez que me fazia hipnotizar.

Rana tem olhar afiado, corajoso e sensível, é do Sudão e tem uma conexão profunda com sua ancestralidade. Com o coração partido com o que acontece em seu país atualmente, não desvia o olhar e é comovente como testemunha a realidade com amor e lucidez, mesmo nas contradições.

Indra é escritor, tem um programa de entrevistas na Índia, trabalha com Vandana Shiva e política agrária. É impressionantemente carismático e é um incrível contador de histórias.

Tinha também o casal que estava em lua de mel. Eva e Dave eram dois americanos inspiradores que cultivavam parceria e individualidade. Eva participa de um projeto envolvendo ativismo, protestos e música. Seu doc She drums entrevista mulheres que tocam tambor e as imposições sociais que as afetam. Dave apoia projetos desenvolvendo sustentabilidade financeira e também se dedica a explorar como distribuímos melhor recursos concentrados. Ambos cultivavam um brilho curioso, aberto e inclusivo sobre as pessoas que era bonito demais.

A princípio, Liel parecia uma pessoa séria, de inteligência fora da média, e afiada observação. Mas também era fácil encontrá-lo fazendo conexão pelo riso, mergulhando em alguma conversa ou se abrindo ao contar histórias de sua família com lágrimas nos olhos. Liel é de Israel, e além de levantar fundos na organização em que trabalha com Souli, sua sensibilidade o levou a pesquisar territórios que transformaram seus conflitos em lugares pacíficos. Encabeça o filme Elham: the day after, que registra o processo da Irlanda como inspiração para outros territórios.

Harry é uma americana com uma história comovente como nunca tinha presenciado. Enxergava em seus olhos criança, mãe e avó em um só corpo, com coração feroz, leve e generosamente bem humorado.

A chilena Anahí tem a energia da grande mãe, a grande montanha que abraça os rios, com imensa força de transformação e amorosidade.

Quando eu conheci a Noa ela tinha pego malária. Recém-chegada da Nigéria, ela estava facilitando workshops de storytelling e movendo também corações com sua voz e violão.

Danielle era dona das perguntas e questionamentos mais afiados que já presenciei, e apresentou seu curta Mirror Image, que faz uma intrigante e sensível costura com sua família israelense e um espelho árabe.

O Souli trazia risada e também verdades. Seus 10 anos na prisão pareciam ter enraizado presença, coragem e uma confiança inabalável nos corações sensíveis. Uma preciosa ponte de gente, tinha feito a maioria das conexões do grupo que ele mesmo batizou de “champagne life“, em relação a boa vida que a gente podia experimentar ali, tão diferente do trabalho de linha de frente que ele costumava estar. As reclamações sobre essa vida boa eram “champagne complain”. Era assim o animador do grupo, que inventava brincadeiras internas em momentos densos. Mas, sobretudo, é impressionante como cultiva uma visão ampla, de comunidade, em dedicada sinceridade à cura de tantos corações, junto com o seu próprio.

Eram 30 ativistas mergulhando em conversas de conteúdos mais intelectuais sobre dinâmicas de poder, privilégios e como a modernidade mora por dentro de nós. Tivemos práticas de cuidado, dores, alegrias, ancestralidade, conexão, reconexão, natureza, corpo e um workshop de respostas traumáticas. Juntos, limpamos o rio na forma de cuidar do luto, recebemos instruções sobre ferramentas e dinâmicas de grupo, dividimos talentos, trocamos experiências com um grupo de jovens inspiradores e tivemos apresentações de alguns projetos do grupo.

Tive a oportunidade de apresentar os trabalhos que a INOCHI Brasil tem feito na Amazônia, e pude sentir a vibração de todo mundo! Especialmente vindos de A’ida, uma ativista palestina potente que vive em Tamera, e tem uma pesquisa profunda sobre ancestralidade. Ela e outras pessoas de lá estão indo ao território dos Ashaninka no fim do ano, onde irão compartilhar conhecimentos e aplicações importantes de biogás.

Me comoveu especialmente como algumas pessoas estão usando o trabalho de Paulo Freire e Augusto Boal como caminho. Incluir a arte, o invisível e a sensibilização, em tentativa de integrar questões tão concretas, profundas e doloridas de maneira tão inclusiva e, ainda assim nada neutras, é nutritivo e também curioso, pois não vejo isso aqui no Brasil ainda.

É difícil pôr em palavras a experiência.

Algo do encontro das texturas das frestas dos atritos tensões dos movimentos que formam corpos juntos
que só se sente na pele
que se aprende na pele
política espiritualidade amor prazer
feito aranha que sente seu corpo além
através de suas teias
e se comunica percebe e se relaciona
construir comunidade 
construir intimidade
recusar-se a criar inimigos.
quando abro, vejo:
estar vivo é estar junto.

Aprendi que a confiança abre espaço para liberdade, que falar e reconhecer a verdade por dentro do coração me abre e aterra. Aterra como quem é incluído. Porque isso também é parte. E ao incluir, um espaço de intimidade se abre pra que aquilo seja transformado. É compaixão, junto da honestidade, que floresce em encantamento pela vida. Abertura que se dá, corpo e terra. O chão em confiança. Uma experiência que não é estruturada e firme. Não é bem algo que se espera. Era mais como uma casa de pássaros no alto de uma árvore onde cada um traz galhos que encontra em cada jornada, com responsabilidade, verdade e sem crueldade. Juntos, construímos a casa e sustentamos os valores que acreditamos fazer sentido. 

Claro que não era todo momento assim. Mas, por momentos, vi que era possível. Regular, nutrir, cuidar, ter prazer, mudar, conectar, em coemergência. Construir teias.

Me senti em casa com pessoas que nunca tinha visto, e descobri família.

Antes de chegar em Tamera, eu estava com medo. Me questionava se era mesmo ativista, ou se eu sabia o suficiente. Não sabia o que eu ia fazer lá, não conhecia ninguém e nem sabia se eu tinha algo a contribuir de fato. Acho que depois dessa experiência, posso dizer que ativistas são seres mágicos, de corações grandes e sábios, de almas rebeldes, com muitos questionamentos e medos, mas não desistem. Ativistas são aqueles que se dedicam ao cuidado e à celebração da vida de todos, em defesa do que é sagrado. E vejo que todo mundo tem esse coração.

Pensa: seria tão mais legal se todo mundo liberasse o coração!

O tempo era offline e não consegui tirar tantas fotos. Muitas pessoas não queriam ou podiam ser expostas nas redes sociais. Mas o coração também memoriza pele e palavras. guardo pra espalhar.

(Por inspiração do Gustavo, presenteamos Souli em nome da comunidade com o livro de Ailton Krenak A vida não é útil, no qual um dos capítulos foi uma fala que foi feita no lugar. Conseguimos uma edição traduzida pro inglês, na busca de pontes entre povos da floresta e povos do deserto.)

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