Sabedoria de velório

por Gustavo Gitti

A gente não faz a mínima ideia de como lidar com a morte. Frente ao corpo sem vida – aquele mesmo que por décadas foi um ser com histórias, brilho no olho, intencionalidade, relações, voz, sonhos, fome – é como se estivéssemos encontrando um bug no sistema, um extraterrestre, um buraco negro, um monstro de cem cabeças, algo completamente inesperado que não se encaixa em nossas teorias sobre a realidade. Ninguém sabe o que fazer. Ficamos ali perambulando, conversamos sobre qualquer coisa, rezamos, esboçamos algum ritual, batemos palma e enfim enterramos.

Saímos do cemitério meio zonzos, sem saber direito o que aconteceu, como se tudo fosse um sonho. E depois vamos comer em alguma lanchonete. Mas nenhum lugar está preparado para ser um lugar de luto. Não há espaço para o reconhecimento do fim. Todos os locais são felizinhos demais. Igual Facebook, Twitter, Instagram. Entre placas de trânsito e anúncios de lingerie, o mundo não oferece nenhum lembrete assim: “Estaremos todos mortos daqui a pouco”. Nosso desespero diante da morte é um grande sinal de nossa confusão na vida: não sabemos bem onde estamos, quem somos, por que sofremos.

Morte no quarto da doente, Edvard Munch (1893)

É por isso que considero aquela sala de velório um local raro e poderoso de contemplação. Quanto mais nos aproximamos do corpo no caixão, maior o silêncio, maior o embaraço. Juntamos as mãos em prece, deixamos as mãos no bolso, cruzamos os braços? A presença imóvel do morto é avassaladora. Remove todo o besteirol que estávamos acumulando por dentro. Em vez de certezas, brotam medo e curiosidade. Somos obrigados a nos curvar diante do mistério que faz seres surgirem e apagarem. Fica difícil dar uma de espertinho ali. O mínimo de exposição ao cheiro da morte já nos deixa mais humildes.

Quando vamos para apoiar familiares próximos (na posição de amigo ou namorado, por exemplo), o aprendizado pode ser ainda maior. Para acompanhar o processo do outro, é preciso interromper nossas projeções e interpretações, soltar os músculos do rosto, relaxar a ponto de não rir nem chorar logo de saída, além de alegria e tristeza a priori, até apenas estar ali, sereno, presente. Não faz sentido empurrar nossas crenças espirituais. Melhor desistir de tentar saber o que fazer. Às vezes tudo o que o outro menos precisa é de alguém que reprima o luto tentando distrai-lo, consolá-lo – ou de alguém adicionando uma seriedade trágica ao sofrimento.

Ao sair do cemitério, em todas as relações, eu queria ser capaz de manter essa postura amansada pela morte.

* Escrito em julho de 2012, logo após o velório de um familiar, e publicado neste mesmo ano na revista Vida Simples.

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