A imaginação muda o mundo (por Norman Fischer)

por Gustavo Gitti

Começamos a estudar em comunidade o livro O mundo poderia ser diferente: imaginação e o caminho do bodisatva. Abaixo, o comecinho maravilhoso dessa obra do Roshi Norman Fischer. Se quiser participar, ainda dá tempo: olugar.org/diferente

Aqui vai uma história sobre como a imaginação muda o mundo, mesmo nas piores circunstâncias possíveis. Ela envolve o poeta surrealista Robert Desnos.

Desnos era judeu. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele virou clandestino para lutar pela Resistência. Ele foi capturado e enviado aos campos de concentração.

Um dia, junto com muitos outros homens, Desnos foi colocado na carroceria de um dos caminhões que transportava os prisioneiros. Os homens sabem perfeitamente para onde estão indo. Os caminhões sempre saem cheios e voltam vazios. Seu destino são os fornos e as câmaras de gás.

Ninguém fala na carroceria. O clima é resignado, abatido. Olhos baixos. Rostos sombrios.

Quando o caminhão chega, os prisioneiros descem devagar e silenciosamente, como num sonho. Os guardas, normalmente cheios de piadas e brincadeiras, ficam quietos, incapazes de evitar o mau humor dos prisioneiros. Mas esse silêncio quase religioso é interrompido abruptamente. De repente, um dos homens na fila de prisioneiros salta, com grande animação, se vira e segura a mão do homem atrás dele.

Surpreendentemente, seu nariz quase tocando a mão dele, seu corpo retorcido com uma energia intensa, ele começa a ler a palma da mão dele.
“Estou tão animado por você!”, ele exclama alegremente. “Você vai viver uma vida muito longa! Você vai ter três filhos! Uma linda esposa! Riqueza! Que fantástico! Que maravilhoso!”

Sua excitação é contagiosa. Primeiro um homem, depois outro, em choque e perplexidade, lhe confiam sua mão. Cada um recebe o mesmo tipo de previsão: vida longa, filhos, riqueza, carreira excitante, belos arredores, paz, felicidade, sucesso, alegria infinita.

Enquanto Desnos lê palma após palma, a atmosfera do momento – inicialmente gota a gota e então como numa súbita onda gigantesca, quebrando de uma só vez – completamente se transforma. Os prisioneiros estão sorrindo, gargalhando, batendo nas costas um do outro, seu fardo suspenso, sua realidade transformada.

Ainda mais surpreende, os guardas também são afetados. Como os prisioneiros, eles viviam um período sombrio no qual a marcha de homens para o massacre era uma ocorrência normal e aceitável no dia a dia. Mas, com esse acontecimento absurdo e sem precedentes, essa evocação gratuita e repentina de uma realidade alternativa, o feitiço é quebrado. Os guardas estão desorientados, confusos. A realidade que eles estavam vivendo até então foi de alguma forma repentinamente posta em dúvida, quase destruída. Eles não estão mais certos do que é real ou não. Talvez suas melhores naturezas – há muito suprimidas em um esforço para se conformar à loucura nazista que definia seu mundo, há muito entorpecidas pela dor, a culpa, o horror – foram sacudidas pelo poderoso comprometimento de Desnos com sua absurda, mas talvez não absurda, visão. Quem sabe? Eles estão, em todo caso, tão descompostos pela divertida cena em frente a eles, que não sabem mais o que fazer. Não podem continuar com as execuções. Então, eles conduzem os prisioneiros de volta ao caminhão e os mandam de volta.
Por meio desse espontâneo exercício de imaginação – precisamente o tipo de jogada que Desnos constantemente usa em sua poesia – ele e esses homens foram salvos da execução.

Desnos sobreviveu aos campos, mas tristemente não sobreviveu à guerra. Ele morreu de tifo alguns dias depois de ser solto.

Soube dessa história pelo poeta Alan Bernheimer, um tradutor de Desnos, que a herdou da escritora Susan Griffin, que ouviu da sua amiga Odette, que é escritora e uma sobrevivente do Holocausto. Quando a ouvi pela primeira vez, fiquei tremendamente comovido. Mas então pensei, é verdade? Aconteceu de verdade? Parece boa demais para ser verdade. Eu não conheço Susan Griffin, mas a contactei para perguntar. Ela me disse que acreditava na história. Odette, Susan me escreveu, não testemunhou o evento, mas ela ouviu de pessoas que disseram ter presenciado.

Por semanas, carreguei a história em meu coração, como um koan Zen, me perguntando sobre ela, revirando-a seguidamente em minha mente. Um dia eu tive uma realização: claro que era verdade! Definitivamente, absolutamente, verdade. De um jeito ou de outro, aconteceu.

A imaginação é poderosa. Ela cria sua própria verdade que valida a si mesma, forte o suficiente para causar transformações internas e externas. Quando digo que estou absolutamente certo de que essa história de Robert Desnos é verdade, não quero dizer que estou certo dela como uma ocorrência objetivamente verificável. Quero dizer que a história, enquanto história, é certamente verdade. Eu sinto sua verdade e ela me transforma, porque expressa algo essencial sobre quem somos como seres humanos.
A imaginação é poderosa. É essencial para nossa humanidade. A Bíblia e outros textos religiosos, contos populares, mitos, rimas, poemas, peças, novelas, anedotas, música, rituais, pinturas, sonhos – todas as produções imaginativas emergem do inconsciente para expandir a alma, para ajudar-nos a sentir quem realmente somos e o que o mundo realmente é. Elas nos ajudam a ir além da perspectiva unidimensional habitual de nossas percepções exteriores e emoções aflitivas. A imaginação não é uma fuga da realidade. A imaginação aprofunda e enriquece a realidade, acrescentando textura, profundidade, dimensão, sentimento e possibilidade. A verdade é: tudo o que é criativo e nos enobrece é, em última análise, objeto da imaginação. Sem a imaginação, a realidade é muito plana, muito pragmática, desprovida de cor e fervor. Para ir além do possível até o impossível, precisamos imaginá-lo.

O século 21 é movimentado e duro. Para as pessoas privilegiadas, com carreiras exigentes, vida social, famílias e miríades de interesses, a vida é melhor do que jamais foi. Mas também é, talvez por causa disso, mais difícil, mais estressante e mais exigente. As possibilidades de crescimento e realização são perturbadoras: a pessoa tem que ser mais, saber mais, experimentar mais, se divertir mais. E tudo isso numa escala cada vez mais acelerada. É difícil respirar.

Para a maioria das pessoas, sem grandes expectativas, uma vida decente parece mais distante do que nunca. Dez por cento da população mundial tem noventa por cento da riqueza, deixando os outros noventa por cento lutando para sobreviver. Para a grande maioria das pessoas, a luta diária para sobreviver em circunstâncias sociais e econômicas cada vez mais penosas é incessante. Mais e mais pessoas simplesmente não conseguem lidar.
Privilegiados ou não, estamos todos cientes do mundo lá fora por meio das notícias atualmente onipresentes da mídia, que se tornou o nosso sistema nervoso coletivo, chamando nossa atenção com constantes trancos de informações, verdadeiras e falsas, sobre problemas políticos, econômicos e sociais. Isso se torna a substância de nossas psiques e conversas. O que o futuro irá trazer? Como será o mundo para nossos filhos e netos? Haverá um mundo? O temor enche o ar. Às vezes, nós o sentimos. Na maioria das vezes, não nos deixamos sentir. É demais. O que realmente podemos fazer?

Estou convencido de que o mundo poderia ser, e na verdade é, diferente – que suas possibilidades não precisam ser, e na verdade não são, limitadas ao tangível, ao conhecido, ao negociável e aos dados que estamos constantemente coletando sobre praticamente tudo o que é mensurável. Dados nos dão a ilusão de que conhecemos o mundo. Mas o mundo é mais do que conhecemos.

A imaginação não mede, concebe ou instrumentaliza. Não define ou manipula. Em vez disso, sua natureza é abrir, mistificar, encantar, chocar e inspirar. Ela se estende sem limites. Ela salta do conhecido para o desconhecido, elevando-se além dos fatos. Ela torna leve o mundo pesado e circunscrito que pensamos habitar. Ela atua nas profundezas, onde o coração e o amor dominam.

A prática espiritual é um dos lugares-chave da imaginação. Eu não vejo uma grande distinção entre espiritualidade e religião, como muitos pensam hoje em dia. Para mim, a prática espiritual é simplesmente religião autêntica, conectada à observação e à experiência, além de ideologia e de crença. Percebo que minha visão é incomum. Muitas pessoas em nosso tempo, tendo sido criadas sem nenhuma religião, naturalmente sentem que a religião é estranha, desnecessária e antiquada. Muitos outros fogem da religião porque foram criados em uma atmosfera religiosa que pareceu dedicada a nos fazer temer qualquer coisa arriscada, alegre ou aberta, mantendo-nos seguros no caminho correto e estreito. Estudei ensinamentos e práticas religiosas em diversas tradições e estou convencido de que, em sua profundidade, não é isso que a religião deveria fazer. A religião deveria nos ajudar a viver mais completamente dentro de nossa imaginação humana. Fazendo isso, ela fornece uma força contrária à gravidade de um mundo humano que sempre esteve cheio de problemas e conflitos. Karl Marx celebremente chamou a religião de ópio do povo. Mas ele também a chamou de “o coração de um mundo sem coração”.

Existe uma razão pela qual Marx se opôs à religião. A religião teve uma história turbulenta. Quando uma religião se torna muito bem-sucedida, ela inevitavelmente se torna uma ortodoxia, uma marca, e seus ensinamentos e práticas, antes provocativos, se tornam debilitados. Em vez de desafiar a sociedade e os indivíduos a serem melhores, uma religião de sucesso se alinha a instituições sociais poderosas para reforçar os valores da sociedade. Isso, por si só, não é algo ruim. Melhor para uma sociedade ser domada por valores religiosos humanos do que ser puramente corrupta e ávida por poder. Mas logo, inevitavelmente, as instituições religiosas, com muito a proteger, se tornam opressivas, limitadas e retrógradas. Quando uma religião pensa que faz sentido negar verdades científicas aceitas e se alinhar com grupos sociais não-liberais cujas ideologias suprimem outras, podemos ver que algo deu muito errado. Então, não é surpresa que a religião tenha parecido tão negativa a Marx e a tantas pessoas no presente. Muitos ficaram machucados por seus piores excessos.

Ainda assim, mesmo no seu pior, a religião tem uma chama acesa de selvageria escondida em seu lado contemplativo, místico – em textos, ensinamentos, práticas e experiências que vêm das extensões inexploradas da imaginação humana, o coração e a alma da religião. A palavra espiritual evoca esse lado essencial e poderoso da vida religiosa, a fonte da criatividade, a nascente da qual sonhadores e visionários do mundo bebem. Eu escolho conservar o mundo e a ideia de religião porque, apesar de seus muitos pecados, as grandes religiões do mundo contêm uma riqueza de tradição, linguagens, práticas e rituais que não podemos nos dar ao luxo de descartar agora, quando precisamos delas mais do que nunca.

[…]

A imaginação expande o coração, nos levando a entender os outros como nós mesmos, e não como nos pertencendo. Isso ecoa as fortes palavras de Shelley: “O grande segredo da moral é o amor, uma saída de nós mesmos e uma identificação [com outros]… O grande instrumento do bem, da moral, é a imaginação.”

[…]

A graça salvadora do ideal do bodisatva é que ele é um ideal tão ultrajantemente extravagante, tão absurdamente imaginativo, que temos clareza desde o princípio que nunca iremos realizá-lo. É literalmente impossível! Nunca poderemos chegar lá. Tudo que podemos fazer é nos manter caminhando para o horizonte do bodisatva, inspirados pela visão brilhante adiante, contentes por nunca chegar.

No Zen, recitamos os quatro votos do bodisatva: seres são inumeráveis, faço o voto de salvá-los; ilusões são inexauríveis, faço o voto de acabar com elas; os portões do dharma são infindáveis, faço o voto de entrar neles; o caminho de buda é insuperável, faço o voto de me tornar um buda. Esses votos são perfeitamente impossíveis, nós sabemos que não podemos tomá-los como objetivos comuns. Eles são objetivos imaginativos, tomados num mundo imaginativo por seres imaginativos. Nós somos esses seres imaginativos. Tais votos apontam uma direção e inspiram nossos sentimentos e ações, mas não nos pressionam. Nós os praticamos com alegria e bom humor. E nós os realizamos – na imaginação.

Quer estudar esse livro em comunidade?

Acabamos de começar o estudo de O mundo poderia ser diferente, de Norman Fischer. Todas as informações estão aqui: olugar.org/diferente