As pessoas menos angustiadas da tv brasileira (por Sílvia Amélia de Araújo)
Passeando pelo Facebook, nos deparamos com este texto de Sílvia Amélia de Araújo, curiosamente tão espontâneo quanto certeiro. Pedimos para a Sílvia para publicarmos aqui essa alegre análise de Bela Gil e Rodrigo Hilbert, duas pessoas muito admiradas na televisão brasileira (e também as menos angustiadas). Aproveite a leitura aguçada e bem-humorada.
Por que Bela Gil e Rodrigo Hilbert parecem ser as pessoas menos angustiadas (ou talvez mais felizes) da televisão brasileira? Essa pergunta eu mesma me fiz. E aqui estão minhas divagações.
1) Eles não têm o nome no Serasa
Claro, uma parte óbvia é que são pessoas com boa situação financeira. Mas tem muito rico e famoso explodindo de angústia. Então só isso não explica muita coisa.
2) Eles foram muito amados ao longo da vida e parecem ter tido uma boa infância
Como falam e mostram suas relações familiares, fica essa impressão, que ambos foram muito dengados, com beijos e bolão de aniversário, saca? Não importa se pra uma o bolo era com açúcar mascavo e mix de castanhas. E o outro um bolo tradicional molhado no guaraná e com creme de ameixa no meio.
Eles têm cara de que foram crianças mimadas (no sentido da criação neurocompatível), que cresceram sabendo-se importantes, preciosos, como toda criança deveria se sentir em suas famílias. Isso mesmo eles, nos dois casos, tendo convivido com pais não muito presentes.
Eu observo isso nas pessoas. Já intui corretamente várias vezes que um adulto diante de mim apanhou com bastante violência na infância. Existe um olhar meio desconfiado do mundo que permanece nessas pessoas. Se alguém atravessa a barreira de não ter sido maltratado na infância e de não ter dívidas atualmente já é maior a chance desse ser não carregar intensamente a chama opaca da angústia nos olhos. Bom, mesmo assim, sigo com a análise de nossos queridos personagens.
3) Eles cresceram em lares criativos, com bom humor e liberdade
Mais do que terem sido bem tratados quando pequenos, Rodrigo e Bela parecem ter crescido em lares de pessoas criativas e com um olhar de liberdade e humor para a infância.
O fato dele ter aprendido, quando menino, a bordar e cozinhar com a mãe e as tias, e a ser ferreiro, serralheiro e marceneiro brincando na oficina do avô, já diz sobre o ambiente em que cresceu. Bela é apenas filha do atual patriarca da cultura brasileira. E, sei lá, quando menina ela dançou em um clipe do É o tchan!, acho isso muito divertido.
4) Eles mantêm contato com a natureza
Diferente da maioria dos demais programas de culinária, Rodrigo Hilbert e Bela Gil sempre estão com a mão na terra, em hortas, pomares, fazendas, e outros lugares bonitos com horizonte cheio de árvores. Isso deve contribuir de alguma forma para terem um semblante sem estresse.
5) Eles têm prazer no trabalho
Isso é outra coisa que enxergo nos dois. Coisa rara, raríssima. Sabe essas pessoas que falam que trabalham com o que amam? Então, não é isso. Tem muita gente que diz trabalhar com o que ama, mas falta arrancar os cabelos da cabeça de estresse enquanto está trabalhando naquilo taaaanto ama. Outras choram com frequência de angústia porque têm grande envolvimento emocional com um trabalho que dizem amar, mas que as colocam em contato com o lado desgracento da vida.
Falo de prazer mesmo, de dizer, oba, hoje eu vou fazer isso! Tanto a Bela Gil quanto o Rodrigo Hilbert passam essa impressão de sentir alegria com o trabalho em si.
6) A junção de reconhecimento e autenticidade
Os dois são admirados e reconhecidos por fazer algo muito específico na televisão. Tão específico que viraram de alguma forma referência. Ela fala de alimentação e vida saudável de um jeito só dela, virou um jargão o “você pode substituir isso por…”. Ele assa o pão mas antes constrói o forno também de uma forma só dele.
Tem algo de muito autêntico nos dois, parece que ninguém vai saber fazer o que eles fazem daquele jeitinho. E eles não parecem querer ser como ninguém. São satisfeitos em ser quem são. Ah, quanta gente não tem um olhar meio depressivo pra vida por ansiar por esse tipo de reconhecimento, hein?
7) Eles têm ambições “realistas”
Esse ponto tem a ver com o anterior. A sensação que eu tenho é que tanto o Rodrigo Hilbert quanto a Bela Gil alcançaram um sucesso maior do que esperavam. Devem ter sim muitos projetos pessoais pro futuro, mas não parecem ansiosos por fazer algo maior, mais grandioso, com muito mais visibilidade e prestígio. Queriam ter um programa de culinária, conseguiram, fizeram bem feito, inventaram outros programas, outros projetos, mas tudo em torno de um mesmo princípio.
O Fábio Porchat, que citei no outro post, parece ansioso por uma próxima fase, uma próxima oportunidade, mais um salto, como se tudo o que ele faz hoje não fosse um fim, mas uma passagem para algo mais. Entende? Ao mesmo tempo em que ele parece temer perder tudo o que tem se não se mantiver em frenético movimento…
O Luciano Huck, que poderia estar satisfeito com o horário nobre que ocupa na televisão aberta, quer ser presidente da república! E por isso também carrega angústias decorrentes desse desejo desmedido… Bela e Rodrigo não parecem ser megalomaníacos.
8) São bem reconciliados com suas histórias de vida
Tanto Rodrigo Hilbert quanto Bela Gil parecem abraçar suas histórias e origens. Ela usa as músicas do pai famoso em seu programa, usa o sobrenome, grava na casa dele, tem até um programa com nome de uma música dele.
Claro que o fato dela não ser cantora ajuda, mas Bela realmente não parece ter aquela angústia típica de filho de famoso de querer provar que não conseguiu nada por conta disso. Ela aceita e reconhece com tranquilidade as portas que esse privilégio abriu.
Já Rodrigo leva mãe, tias, primos, amigas da mãe e quem mais fez parte da sua história de vida pra dentro dos seus programas. Ele demonstra orgulho por ter crescido no interior e faz o tempo todo reverência aos conhecimentos adquiridos com as mulheres de sua família.
Uma fonte de angústia na vida de alguém é não se sentir uma pessoa coerente com sua história, ou seja, demonstrar uma cara social totalmente desconexa do seu passado. Bela e Rodrigo parecem estar sempre a dizer de alguma forma de onde vieram.
9) Eles não lutam pra ter razão
Também isso, ambos me parecem pessoas que não caem fácil em provocação e nem entram em bate boca. Bela Gil já foi muito criticada por sua escolhas. E ela continua defendendo o seu ponto de vista sem entrar em treta diretamente com ninguém. Rodrigo recebe de vez em quando umas alfinetadas machistas sutis de outros homens. E ele não se abala, continua sendo como é. Ele errou recentemente um pudim no programa É de casa, e reagiu com naturalidade, disse que desenformou antes da hora, admitiu que errou e tudo bem.
Bela enfrentou todo tipo de deboche por causa da melancia grelhada e continuou de boaça. Eles não se desgastam se defendendo, se justificando, se afirmando, eles não parecem muito levar criticas para o lado pessoal. Deixam passar e seguem. Ser uma pessoa com poucos inimigos é algo que deve diminuir bem as angústias.
Paola Carosella e Rita Lobo (duas que eu adoro), por exemplo, já “compraram” muitos inimigos. Bela e Rodrigo parece que nem se a pessoa quiser muito consegue provocá-los a uma briga.
10) Eles têm carinho com seus próprios corpos
Bela Gil fala com satisfação que tal alimento tem vitamina B12. Ela fica realmente feliz ao comer algo saudável, até mesmo se não for tão apetitoso. Ele cozinha uma comida mais caseira, que conforta o coração. Ambos praticam yoga.
Vejo os dois como pessoas que amam o próprio corpo, não de uma maneira vaidosa, mas quase espiritualizada. Eu não os imagino cometendo grandes excessos, como beber todas até esquecer quem é o presidente do Brasil.
11) Eles gostam de servir e alegrar os outros
Tanto Rodrigo quanto Bela parecem pessoas que sabem acolher sem intimidar. Isso não é comum em pessoas famosas e/ou ricas. Ambos parecem ter prazer em cozinhar para os outros. E seus programas têm essa proposta, eles sempre cozinham pensando na pessoa que vai comer. Ele e ela demonstram uma generosidade típica de pessoas comuns que gostam de cozinhar.
12) São estilo “faça você mesmo”
Rodrigo e Bela são do tipo de pessoa que coloca a mão na massa, não só pra fazer comida. Ele constrói o forno pra assar a pizza que ele também fez, a churrasqueira pra fazer o churrasco. Se vai fazer um escondidinho de mandioca ele mesmo colhe a mandioca da terra. Construiu o berço da filha, construiu uma casinha na árvore pros filhos.
Bela também é assim, além de cozinhar, faz seu próprio desodorante, seu sabonete, sua pasta de dente, seu shampoo, seu absorvente, seu batom, sei lá, se depender dela a Unilever, o Boticário e a Avon vão à falência.
E o que isso tem a ver com ser menos angustiado? Tudo. Não é a toa que o povo anda fazendo pão e bolo na quarentena. Cozinhar ocupa as mãos e distrai um pouco a cabeça, a comida pronta traz um senso de realização.
Agora pense ser alguém que se resolve sozinho em muitos assuntos além de cozinhar bem? Que simplesmente pega algo pra fazer e faz. Deve ser muito bom ser assim.
13) São um exemplo positivo — e sabem disso
Tanto Rodrigo quanto Bela representam algo de bom. Rodrigo é um modelo positivo de masculinidade. Um homem que cozinha na TV sem a respeitabilidade de ser um chef de cozinha, ele é um cara que diz “vou mostrar como se faz uma torta de presunto que minha mãe me ensinou”.
Por mais que a gente faça piada, ele é uma referência interessante em um Brasil de homens que assumem poucas atividades domésticas e de uma classe média que despreza os trabalhos manuais. Bela de tanto mandar a gente comer inhame, a gente acaba comendo inhame. Afinal, a boca boa que ela faz pra falar de um inhame assado (quase) nos convence a substituir a batata frita por ele.
To de brinks, viu, sei que a Bela Gil tem uma atuação política mais ampla, de defesa dos alimentos orgânicos, da sustentabilidade, da agricultura familiar e da produção pelo MST. Também é uma voz a falar sobre parto humanizado, violência obstétrica, e claro, alimentação saudável também para criança.
Enfim, cada um à sua maneira, eles são pessoas que com seu trabalho trazem algo de bom pra sociedade. E a consciência de que sua existência torna o mundo um tiquinho melhor é fonte de alegria sim, certamente ajuda a apaziguar as angústias. De muitos ricos e/ou famosos não podemos dizer isso: que são um exemplo de gente legal.
Gostaram de algum tópico? Acrescentariam alguma coisa? Isso é só um post, ok? Não é um artigo científico. São reflexões soltas que tive enquanto embalava meu neném nos braços ontem de madrugada. Falo de pessoas que conheço apenas pela televisão. Pessoas que admiro por enxergar nelas uma certa alegria de viver não muito comum. Para os angustiados que me leem, talvez algo desses personagens sirva de inspiração. Ou talvez tudo o que escrevi renda somente uma boa conversa fiada por aqui, e já está de bom tamanho.
Sílvia Amélia de Araújo é jornalista, escritora e escreveu este texto em seu perfil no Facebook.