Lótus no mar de fogo (por Roshi Joan Halifax)

por Fábio Rodrigues

“Lótus no mar de fogo”, pintura de Fábio Rodrigues — artecontemplativa.com

Prefácio de Roshi Joan Halifax para o livro Faces of Compassion – Classic Bodhisattva Archetypes and Their Modern Expression de Taigen Dan Leighton. Tradução de Fábio Rodrigues.


Quando consideramos a história dos arquétipos de bodisatva, nós tocamos toda a longa história do budismo. Também tocamos o momento presente e o sofrimento de todos os seres do mundo de hoje. E somos convidadas a considerar o futuro, e como devemos viver, com coragem e amor, abarcando umas às outras para que nós e todos os seres possamos despertar deste sonho rude do nosso mundo atual para um mundo que é mais bondoso e são.

As bodisatvas desabrocharam como finas e raras flores, na China, há cerca de dois mil anos — embora suas sementes estejam por toda parte no budismo antigo da Índia, e nós sintamos sua presença nas quatro moradas incomensuráveis da bondade amorosa, compaixão, alegria simpática e equanimidade. Com o advento do budismo na China e a abertura da prática e da devoção ao mundo dos leigos, desenvolveram-se arquétipos ativos e compassivos no terreno da vida cotidiana e da imaginação popular.

Representação chinesa da bodisatva Avalokiteshvara, século XI

Esses arquétipos têm um aspecto muito humano. Eles não são distantes ou passivos, mas envolvidos com o mundo, com você e comigo, com todos os seres. Os arquétipos de bodisatva manifestam, todos, os sabores da compaixão, e cada bodisatva tem adiada a sua partida do mundo do samsara até que os seres em todos os lugares estejam livres do sofrimento. Seu desprendimento nos toca e tem inspirado milhões por milhares de anos. E sua presença continua, em nosso próprio tempo, apontando para princípios orientadores de um mundo mais compassivo e são.

Embora as bodisatvas sejam figuras míticas, elas também são funções dentro da psique, arquétipos de compaixão, e o mito e a psicologia se fundem na presença e na atividade desses seres compassivos. Os budistas tibetanos chamam os bodisatvas de “Guerreiros Despertos”, pois eles manifestam uma grande força de caráter e virtude para o bem dos outros.

Bodisatvas praticam para sempre as perfeições de generosidade, integridade, paciência, entusiasmo, estabilidade mental, sabedoria, dedicação firme, meios hábeis, poderes e conhecimento proveitoso, e por isso elas nutrem essas qualidades em nós enquanto nós estudamos, praticamos com elas, oferecemos devoção e as emulamos — até que, finalmente, possamos fazer a descoberta de que nós somos elas.

”Bodisatva Avalokiteshvara de mil braços de pé”, escultura de Enku (1632–1695), Japão

O coração da bodisatva está sempre voltado para outros seres. Ela escolhe se colocar nas situações mais difíceis, e tem a energia e o compromisso natural de rastelar as almas dos infernos que criaram. E faz isso sem apego aos resultados e com um espírito de otimismo radical.

De fato, a vida toda da bodisatva nada mais é do que ajudar os outros. A bodisatva é como uma boneca de madeira cujas cordas são puxadas pelo sofrimento do mundo. Quando o arquétipo de bodisatva é realizado, há uma sensação de ausência de escolha e também de ego. A mão direita cuida da esquerda sem hesitar, não se infla com elogios e nem se encolhe de culpas. 

“Avalokiteshvara mecânico”, escultura de Wang Zi Won, Coréia do Sul, 2011

As bodisatvas realizam também a grande e natural indelimitabilidade da mente e do coração, e são os exemplos da sabedoria-mãe. Elas não podem ser queimadas, ainda que estejam bem no meio do fogo do mundo — uma lótus em um mar de fogo. Elas inspiram veneração — quer sejamos budistas, cristãs, judias, muçulmanas ou simplesmente humanas — e nos lembram do que nós podemos ser e de como podemos nos colocar em face do ultraje e da miséria. 

A cada noite, os ecos desta recitação, os Quatro Votos de Bodisatva, podem ser ouvidos em muitos templos budistas ao redor do mundo:

As criações são inumeráveis, eu faço o voto de libertá-las.

As delusões são inexauríveis, eu faço o voto de transformá-las.

A realidade é indelimitada, eu faço o voto de percebê-la.

O caminho do despertar é insuperável, eu faço o voto de corporificá-lo.

Somos nós mesmas que estamos fazendo os votos de bodisatva. E o que é que nós estaríamos jurando além de ser o que nós realmente somos?


Quer estudar e praticar a compaixão em comunidade?

Qual a diferença entre empatia e compaixão? Como lidar com tanto sofrimento em nós e nos outros sem colapsar? Diante de tantos problemas sociais e ambientais, fruto de desconexão e ignorância, como podemos nos fortalecer como agentes de compaixão e sabedoria no lugar onde já estamos?

Nos últimos quatro anos, mais de 1000 pessoas de todos os estados do Brasil e de 20 países estudaram juntas os livros Um coração sem medo (Thupten Jinpa), O poder de uma pergunta aberta e A lógica da fé (da própria Elizabeth Mattis-Namgyel) e Quando tudo se desfaz (Pema Chödrön). Dessa vez, vamos nos debruçar por 15 semanas no livro À beira do abismo, de Roshi Joan Halifax, publicado pela editora Lúcida Letra.

À Beira do Abismo é uma verdadeira uma aula sobre compaixão e transformação social, incluindo práticas detalhadas, relatos comoventes e diversas pesquisas científicas reunidas por Roshi Joan Halifax em décadas de sua vasta experiência. Um livro perfeito para o nosso momento no mundo e especialmente no Brasil!

Algumas semanas serão conduzidas por Jeanne Pilli (tradutora do livro e professora de compaixão pelo método Cultivando o Equilíbrio Emocional) e Cristiano Ramalho (formado pelo Treinamento do Cultivo da Compaixão, criado por Thupten Jinpa). Além disso, teremos um encontro especial com Ven. Tenzin Chogkyi e outro com a própria Roshi Joan Halifax!

Teremos também manhãs de silêncio com meditações guiadas, práticas sugeridas e rodas de autoorganização para transformação social.

Veja como será ➞ olugar.org/abismo

Ah, para vocês verem como o livro é detalhado, esse é o sumário apenas do capítulo sobre empatia (há outros focados em compaixão, altruísmo, engajamento, integridade…):