O sentar em roda e a cura do mundo (por Lama Padma Samten)

por Fábio Rodrigues

Estes são trechos do livro Relações e redes, do Lama Padma Samten, que pode ser adquirido aqui.

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Se tivéssemos uma relação positiva com a coletividade, seria realmente maravilhoso. As inteligências coletivas pensam sobre cada um de nós e, assim, podem nos ajudar; deveríamos reforçá-las.

Sua Santidade, o Dalai Lama, afirma que a compaixão é a base da sociedade, não a economia, e lembra que todos desde nossa infância fomos e somos apoiados a fundo perdido por uma rede compassiva. Hoje está claro que essa rede inclui a multiplicidade de seres da biosfera e a própria rede constitui a vida desde sempre.

Quando sentamos em roda, nos olhamos diretamente e pensamos sobre o que está andando bem e como podemos melhorar nossas vidas—a inteligência compassiva fundadora das redes, que dá sentido à nossa vida, brilha. Somos então capazes de entender e acolher as visões e os mundos dos outros, e surge a auto-organização como a capacidade coletiva de criar soluções práticas e ações em meio ao mundo. Nosso desafio presente é acionar a inteligência da rede compassiva, definir nossas prioridades e visões de futuro, e fundar a nação pela auto-organização. Precisamos ultrapassar o estreitamento da visão herdada do passado colonial, que nos coloca na posição inferior de criar e sustentar mentalmente a imagem de uma elite protetora e dela demandar as soluções que nunca vêm.

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Jacatirão da série “Uma flor abre o mundo”, pintura de Fábio Rodrigues

O acordar neste tempo é individual e coletivo. Mudamos internamente pela prática espiritual e mudamos coletivamente pelas iniciativas dos grupos onde nos inserimos. O acordar coletivo já é a construção de um tecido social compassivo que começa com o sentar em roda, com o encontro localizado e focado onde nos olhamos uns aos outros e perguntamos o que está indo bem e o que poderíamos fazer para melhorar.

É um processo convergente: nos alegramos e alegramos a todos—isso é reencantamento e auto-organização. Quando sentados em roda nos olhamos diretamente e brilha a inteligência compassiva fundadora das redes que dão sentido a nossas vidas. Somos então capazes de entender e acolher as visões e os mundos dos outros. Surgindo o sonho coletivo, surge a auto-organização como a capacidade do grupo de criar soluções práticas e ações em meio ao mundo.

O reencantamento é um aspecto, poderíamos dizer, revolucionário. O nosso coração acorda, nos engajamos com alegria e energia. Se estiver preso ao processo econômico, tome a sua vida de volta! Você não precisa vender também o restante da sua vida; compre para usar, alegrar os outros e se alegrar!

O acordar é passar a ver tudo ao redor de outro modo, não se trata de uma mudança lógica, causal. É algo luminoso, verdadeiramente transformador. Como diz o mestre Dogen: “Quando a velha ameixeira de tronco retorcido floresce, é primavera”. A flor da ameixeira produz a primavera, o olhar muda para a primavera, e tudo se torna primavera. Em todas as direções que se olhe, mesmo que ainda haja frio, mesmo que as plantas não estejam ainda brotadas, todos adivinham a primavera. É então primavera.

“Uma flor abre o mundo” – Pintura de Kazuaki Tanahashi para o Lama Padma Samten

“Quando a velha ameixeira se abre de repente, surge o mundo das flores desabrochando. No momento em que surge o mundo das flores desabrochando, a primavera chega. Há uma única flor que abre cinco pétalas. Neste momento de uma única flor, há três, quatro e cinco flores, centenas, milhares, miríades, bilhões de flores — flores incontáveis. Essas florações são não-envaidecidas de um, dois ou incontáveis ramos da velha ameixeira. Uma flor de udumbara e flores de lótus azul também são um ou dois ramos das flores da velha ameixeira. Florescer é a oferenda da velha ameixeira.”

—Eihei Dogen, no fascículo “Flores de Ameixeira” (梅華: Baika)

O olhar é que é o determinante. A ação do Bodisatva da Compaixão Chenrezig é criar a primavera perfumada. O inverno, esse tempo de obscuridade mental, não é necessariamente uma realidade fixa. O período da aflição é superável, não há uma base para o inverno que não seja a própria incapacidade de ver a primavera.

A conversa apreciativa já se dá num âmbito de primavera. Sonhamos e criamos a primavera! A linguagem crítica é uma linguagem que critica o inverno, mas isso não quer dizer que eu consiga criar a primavera, entende? Na verdade, enquanto critico o inverno, me consolido no inverno, dou muita densidade e solidez para o inverno. Então, não é que a gente não deva criticar o inverno; sim, podemos criticar firmemente o inverno. A questão é que o processo crítico do inverno só ocorre dentro da bolha correspondente àquele universo, sentindo o próprio inverno. Sendo assim, nos mantemos atrelados aos referenciais que embasam o que criticamos. Se formos com sucesso até o final do processo crítico, ele se esgota, aí nós paramos e pensamos: “Enfim, fazemos o quê?”.

Pelo processo da primavera, surge um atalho direto: o que nós queremos construir? Porque o engano não é de alguém, a gente não precisa criticar alguém, nem condenar, nem prender, nem qualquer outra coisa. O que precisamos é ajudar, seja a quem for, a se mover na primavera, a se mover dentro de uma visão mais ampla. Esse é o ponto, esse é o desafio.

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Even in the night / of a long stone hard winter / spring blossoms — Poema de Roshi Joan Halifax

Ao sentar em roda, as pessoas olhando-se umas às outras, avaliando o que tem funcionado bem e o que pode melhorar geram visões convergentes para a ação de suas mentes e energias. Movidas pela originação dependente, referenciadas pelos sonhos conjuntos, cada um manifesta sua mente criativa. E, em conjunto, muitas inteligências constroem as realidades e mundos mágicos de possibilidades benignas que manifestam as Terras Puras onde cada um pode estar mais próximo da lucidez espiritual última.

Sentam em roda os pais, mães, avós, filhos, jovens, crianças. Assim construímos passo a passo o tecido social compassivo, as oportunidades econômicas. Estamos desafiados a construir as redes compassivas que manifestem esse tecido social ambientalmente sustentável. O surgimento dessas oportunidades vem junto com o brilho dos olhos e a alegria do coração. A vida pulsa e se constrói positivamente. O mundo volta a fazer sentido.

Sob o ponto de vista espiritual temos o encontro com os desafios e dificuldades, o encontro com a violência e desarticulação não é respondido com inimizade e agressão. A negatividade e a dor, em lugar de produzirem mais dor e mais negatividade, produzem o impulso vital da construção de mundos melhores e relações equilibradas e lúcidas. Essa energia nos dá um nascimento espiritual elevado e sustenta nossas vidas, é a própria essência da alegria e felicidade.

A felicidade é possível. Deste modo todas as relações se tornam vitoriosas, todos os desafios são néctar.

A mudança da mente muda o mundo. A flor cria a primavera, a visão da primavera muda o mundo inteiro. Sim, a realidade é luminosa, coemergente com a mente. Essa é a era da luminosidade. É o tempo de acessar as possibilidades do que antes não era visto. É o tempo de acessar as liberdades naturais incessantemente presentes. É o tempo da lucidez. É o tempo das Terras Puras. A ciência, hoje aprisionada ao processo econômico, se tornará aliada de Terra Pura. Não é o tempo da estreiteza da visão e nem do sofrimento. A visão estreita será ampliada. O mundo é um jardim da luminosidade da mente. Estamos no alvorecer de uma nova era de visão. O poder dessa visão curará o mundo.

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Quer estudar, praticar e sentar em roda com uma comunidade?

De agosto a dezembro, vamos aprofundar três pontos importantes do texto acima: a conversa em roda, a auto-organização e o poder da imaginação!

Ficaremos 19 semanas em nosso estudo anual, debruçados no maravilhoso livro de Roshi Norman Fischer: O mundo poderia ser diferente: Imaginação e o caminho do bodisatva. E em paralelo, iniciaremos um novo ciclo do Pensamento profundo, ação eficaz, que é nosso laboratório de auto-organização para ações de transformação social.

Saiba mais e participe:
www.olugar.org/diferente