Caliandra – Uma flor abre o mundo

por Fábio Rodrigues

Já viu como se tornou corriqueiro dizer que está tudo um caos? O caos é mesmo real, político, cultural, ambiental, social, sanitário, econômico… Mas como ir além de meramente repetir indignação e platitude? Como não cair em desistência niilista ou ingenuidade sonhadora e gerar ações relevantes?

Caliandra persistindo entre uma estrada poeirenta recém patrolada e uma plantação de soja estendendo-se até o horizonte no coração da Chapada dos Veadeiros, Cerrado de Goiás, Brasil (Fotografia de Fábio Rodrigues) 

Delusão coletiva

É preciso que isso seja visto e dito claramente: uma condição indispensável para que o caos de hoje funcione é a negação ativa da realidade. Não é apenas negacionismo climático, mas negacionismo em relação ao mundo como ele basicamente é. Muito do nosso medo e raiva vem de ver a fricção entre a loucura e a realidade, incompatibilizáveis, repercutindo nos absurdos cotidianos para os quais nós vamos freneticamente tossindo nãos, até não termos mais respiração, clareza e tempo para qualquer coisa que não seja preservar uma sanidade e sobrevivência mínimas. Dia após dia, através de um, dois, três anos de notícias estapafúrdias, reclamações, notas de repúdio e crimes de responsabilidade, até que a gente se acostume. É um método: não há como lidar com problemas estruturais enquanto estivermos ocupados, cansados e individualizados.

Não é mais apenas um embate clássico entre campos políticos ou ideológicos, não é mais exatamente “populismo” ou “direita”. O grande embate do nosso tempo é entre a vida e as abstrações sobre a vida — as inteligências artificiais e alienígenas do capital, do pensamento econômico, das normoses e bolhas que nos aparecem como se fossem o mundo todo, como se a história tivesse chegado ao final, pronta e dada. O embate que temos é entre a realidade e a loucura. Como acordar de uma delusão coletiva? 

Solução coletiva

Já sabemos também que não existem respostas fáceis. Tanto que isso é, muitas vezes, mais uma razão para o desânimo. Mas na verdade é uma ótima notícia que a solução prática não esteja dada, pois qualquer resposta-pronta, exatamente por chegar pronta, não poderá dar conta da realidade. Pelo contrário, respostas fáceis (“Bandido bom é bandido morto!”) são problemas. Assim, ver que não há receita de bolo para arrumar o mundo deveria nos animar.

Agora, uma coisa que pode ser feita é insuflar de vida justamente a pergunta “O que pode ser feito?”. Ou seja, propiciar que nosso interesse cresça até que resolvamos experimentar o óbvio: sentar juntos, perguntar uns para os outros, e aí escutar genuinamente. Se desejamos que as respostas nasçam dos nossos próprios interesses e talentos, essa é a condição básica. De onde mais viriam respostas? O mundo sempre esteve em nossas mãos, é preciso lembrar disso não mais terceirizar a gestão de nossas vidas. O Lama Padma Samten explica no livro “Relações e Redes”:

“Sua Santidade, o Dalai Lama, afirma que a compaixão é a base da sociedade, não a economia, e lembra que todos desde nossa infância fomos e somos apoiados a fundo perdido por uma rede compassiva. Hoje está claro que essa rede inclui a multiplicidade de seres da biosfera e a própria rede constitui a vida desde sempre. Quando sentamos em roda, nos olhamos diretamente e pensamos sobre o que está andando bem e como podemos melhorar nossas vidas — a inteligência compassiva fundadora das redes, que dá sentido à nossa vida, brilha. Somos então capazes de entender e acolher as visões e os mundos dos outros, e surge a auto-organização como a capacidade coletiva de criar soluções práticas e ações em meio ao mundo.

Nosso desafio presente é acionar a inteligência da rede compassiva, definir nossas prioridades e visões de futuro, e fundar a nação pela auto-organização. Precisamos ultrapassar o estreitamento da visão herdada do passado colonial, que nos coloca na posição inferior de criar e sustentar mentalmente a imagem de uma elite protetora e dela demandar as soluções que nunca vêm.”

Uma flor abre o mundo

“Quando a velha ameixeira se abre de repente, surge o mundo das flores desabrochando. No momento em que surge o mundo das flores desabrochando, a primavera chega.”

—Eihei Dogen
Caliandra (Calliandra dysantha), a flor símbolo do Cerrado – Pintura de Fábio Rodrigues

Para que nosso interesse não morra pelo caminho e as respostas nasçam, tem uma coisa que não pode faltar, que é a confiança natural de que qualquer situação pode ser transformada. Entre inúmeras outras formas, essa visão está apresentada de maneira simbólica na imagem e no ensinamento das flores, como tem apresentado o Lama Padma Samten e Sensei Kaz Tanahashi com base nos escritos de Eihei Dogen, um revolucionário monge Zen japonês do século XIII.

Sensei Kaz explica que, ao contemplar os textos chineses e fazer suas próprias traduções para o japonês, Dogen às vezes dava diferentes cores e expandia artisticamente os significados originais. Parte da originalidade poética, estranheza e surpresa do pensamento de Dogen é caracterizada por isso. Por exemplo, uma linha da poesia de Rujing pode normalmente ser traduzida como “As flores da ameixeira abrem no início da primavera”. Dogen traduz isso como “As flores da ameixeira abrem o início da primavera”.

Remover a causalidade habitual expõe um significado contraintuitivo e mais profundo: mesmo que haja inverno por todo lado, quando vemos que há uma flor, nós ficamos sabendo que é primavera. O que se sente na pele ainda é o vento frio e a chuva gelada, mas agora a mente é de primavera — com ideias, relações, criatividade e confiança de primavera. Não é uma decorrência causal, não surge otimismo porque as coisas estão favoráveis. A transformação da visão é inseparável da transformação do mundo, a mudança da mente muda o mundo, a flor cria a primavera.

“Não há a possibilidade das flores serem vencidas. Isso é admirável, é maravilhoso, porque a flor não é um símbolo de força, não há a sensação de haver luta contra alguma coisa, que tenha alguém derrotado, que haja algum inimigo de fato. O fato das flores surgirem é a vitória da fragilidade. Mas não é fragilidade: é a força que está além da força causal, é a força que transforma por dentro, sem a sensação de luta.”

“Cada um de nós tem como missão principal produzir as flores correspondentes à primavera.”

—Lama Padma Samten

Caliandra

“Uma flor abre o mundo”, pintura de Fábio Rodrigues a partir da contemplação da Caliandra.

A cada ano, a flor e a arte mudam. Dessa vez, a flor que motivou a arte para o intensivo SIM de 2023 é a Caliandra (Calliandra dysantha). Conhecida popularmente pelos nomes de flor-do-cerrado, ciganinha, caliandra ou esponjinha, é uma planta vigorosa que adapta-se com grande facilidade a todas as regiões do Brasil. E a Caliandra é a flor símbolo do Cerrado.

Pouco falado na grande mídia: o Cerrado é classificado como um bioma de extrema importância, lar de variadas espécies de fauna e flora que só existem lá, e de onde brotam as águas que alimentam as grandes bacias do continente sul-americano. E, por inacreditável que pareça, esse bioma tão importante e delicado está hoje em processo de degradação ainda mais acelerado do que o da floresta amazônica. Com um sério agravante: o Cerrado é um ambiente antiquíssimo e em clímax evolutivo, ou seja, uma vez degradado, ele não se recupera mais na plenitude de sua biodiversidade. Por isso, tristemente, o bioma é considerado uma matriz ambiental que já está em extinção. 

Como explica o professor e pesquisador Altair Sales Barbosa: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais — grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse ecossistema, já está em menor quantidade a cada ano.

Florescendo no auge da estação seca, persistentes e vicejantes fagulhas vermelhas em meio à paisagem árida e poeirenta, as Caliandras chamam pela nossa compaixão, pela mais imaginativa e urgente ação protetora de que formos capazes. Pelo bem da vida, pelo nosso próprio bem, a destruição precisa parar imediatamente!

Para saber mais, veja o maravilhoso documentário Sertão Velho Cerrado. Se você tem desejo sincero para engajar em ação direta de proteção ao Cerrado, escreva para o Fábio: iodris@gmail.com

Enviaremos um presente para cada pessoa

Uma visão do futuro é desenhada com nossa imaginação, que pode ser vista como um pincel que pinta sonhos, esperanças e previsões para dias vindouros e distantes. Você tem um pincel e eu tenho outro. Cada um de nós tem um pincel informe de capacidade ilimitada. O que você desenha pode ser diferente do que eu desenho em cores e formas, ou em temas e tons. E ainda assim deve haver semelhanças. Me torno humilde ao compreender que o pincel que conduz meus pensamentos e ações para a transformação social é um dos milhões e bilhões de pincéis trabalhando no mundo.”

—Kazuaki Tanahashi

Não basta dizer apenas um SIM. Precisamos de incontáveis afirmações, com muitas formas, criativas e diversas como nós já somos. Todas e todos temos responsabilidade pelo mundo do qual fazemos parte, e é por isso que o SIM de cada uma e cada um é necessário e bem-vindo. Para celebrar essa confiança, já comecei a criar pinturas da Caliandra que serão oferecidas de presente para cada pessoa que participar do Intensivo SIM. Enviaremos para a casa de cada uma e cada um, como um voto e um lembrete de que a vida e nossas aspirações elevadas podem sempre ser afirmadas.

Arte de Fábio Rodrigues que será enviada para cada participante

São pinturas da série “Uma flor abre o mundo” criadas com pincéis japoneses e artesanais, de cerdas naturais, usando base pigmento de carvão e tinta acrílica sobre papel reciclado, no tamanho de 17 x 32 cm. Cada uma das peças é original, única e assinada com o tradicional “hanko” estampado em tinta vermelha de cinábrio. O hanko é um carimbo com o nome do artista (dado por sua mestra ou mestre) entalhado em pedra na escrita ancestral de selo ou de ossos oraculares. Ele é, ao mesmo tempo, um elemento estético da pintura, a assinatura e o selo de autenticidade. A tinta usada para o selo é feita a partir do cinábrio (cinabre ou cinabarita), um mineral de cor vermelha brilhante que ocorre em veios e aluviões, que é misturado com óleo e fibras de seda ou plantas como a artemísia para se tornar uma pasta consistente e luminosa.

Se quiser participar, está tudo aqui: olugar.org/sim