Dez dias na Amazônia — diário de viagem ao Território Puyanawa

por Lia Beltrão

De 6 a 15 de dezembro Lia Beltrão e Daniel Cunha estiveram no Território Indígena Puyanawa (Mâncio Lima, Acre) para visitar a experiência de plantio agroflorestal que está acontecendo com o apoio da comunidade o lugar desde 2023 e também ouvir com mais atenção sobre as repercussões sociais do projeto. Paralelamente, os dois fizeram oito entrevistas que vão fazer parte de um episódio da Rádio Novelo Apresenta sobre a Retomada Cultural dos Puyanawa. Aqui você pode ler o diário de viagem de Lia, com registros em fotos (a maioria de Amanda Arruda) nesses dias por lá.

Dia 1 — 6 de dezembro, sexta-feira

A viagem começa. Daniel Cunha, Amanda Arruda e eu nos encontramos no aeroporto de Brasília, para pegar o voo com destino a Cruzeiro do Sul, no Acre. Existe sempre uma tensão nessa viagem porque, em caso de qualquer um de nós perder o voo, só haverá outro dali a dois dias. Afinal, estamos nos dirigindo ao “final da linha” do Brasil: Mâncio Lima, onde está localizada a Terra Indígena Puyanawa, é o município mais ocidental do país. Curiosamente, a cidade onde nasci e vivo, João Pessoa, é a mais oriental – são 4.319 km entre um ponto e outro.

Mas, tendo vivido no Rio Grande do Sul, posso atestar que, no Brasil, as diferenças entre Leste e Oeste são muito menores do que Norte e Sul. Ao chegar em Cruzeiro do Sul, parece que estou em uma cidade do interior do Nordeste: pouco ou nenhum planejamento urbano, muitas motos, pouco capacete, um mercado público cheio de riquezas da terra – frutas, plantas medicinais, artesanato – e um povo que não tem dificuldade nenhuma em se comunicar. À tarde, juntamente com Alice Fortes, coordenadora da Aliança Reflorestar da Amazônia, passeamos pela cidade para comprar os últimos itens antes de entrar em território indígena: rede, mosquiteiro, repelente, lanterna e lanchinhos para qualquer emergência. 

Visitamos também a Catedral Nossa Senhora da Glória – esta sim sem semelhança alguma com qualquer outra catedral que qualquer um de nós tenha visto, seja no norte ou no sul. O prédio de proporções enormes tem formato de octogonal, lembrando uma oca indígena. A principal imagem é um gigantesco afresco de uma Nossa Senhora sobre um gigantesco dragão. A placidez dela, o Sol que lhe ilumina por trás, a Lua sob o seus pés e o menino Jesus que ela carrega com graça, são todo um contraste com a força selvagem do dragão. João Fortes, o fundador da Aliança Reflorestar da Amazônia (nossa organização parceira), me falou antes da minha primeira viagem à Amazônia em 2022 da história da catedral: um missionário alemão a teria vislumbrado exatamente assim em uma miração durante uma cerimônia de ayahuasca, décadas atrás. Se foi ou não foi, não consegui confirmar. Mas gosto muito dessa versão. 

Dia 2 — 7 de dezembro, sábado

Daniel Cunha e Lia Beltrão na entrada do Terrirtório Indígena Puyanawa, em Mâncio Lima (Acre)

Chegamos em Território Indígena! De Cruzeiro do Sul até a TI Puyanawa são cerca de duas horas e antes do almoço já estávamos no Centro Ewe Pīdu – em português, Centro Ninho do Beija-flor. Para chegar lá, passamos por duas aldeias (aldeia Barão e a aldeia Ipiranga) e também pela “Arena”, uma espécie de parque cultural e espiritual, onde acontecem todos os grandes eventos do povo, como fóruns, assembleias, olimpíadas indígenas, campeonatos de futebol e onde também está localizada a maloca, um belíssima construção em madeira e palha onde acontecem semanalmente as cerimônias espirituais lideradas pelo Cacique Joel.

O Ninho do Beija-flor está localizado depois disso tudo, em uma área antes destinada para campo e que apenas recentemente tem sido povoada. De fato, nossos coordenadores locais, o Puwe e Varí Puyanawa, foram pioneiros nesse movimento de sair da aldeia em direção a uma lugar mais silencioso e mais próximo da natureza – sim, acreditem, mesmo uma aldeia indígena com poucas centenas de pessoas pode sofrer com os mesmos sintomas de uma cidade.

É ao redor do Ninho do Beija-flor que nosso projeto de reflorestamento está acontecendo. Em frente à casa que Puwe e Varí construíram, e que hoje serve também como lugar de pouso para amigos e parceiros, há um açude e logo depois dele, uma área de campo que está deflorestada desde o tempo dos barões, muito antes da demarcação do território, que aconteceu no ano 2000. É nessa área que está sendo implementado nosso Sistema Agroflorestal (SAF).

Centro Ewe-pidu ou Ninho do Beija-flor, onde moram Puwe e Varí e onde ficamos hospedados.

Mas ao chegar no Ninho nossa primeira missão não foi visitar o SAF nem fazer reuniões sobre o projeto, mas sim, tomar um banho no igarapé, essa palavra tão linda que ouvimos quase todos os dias até o fim da nossa viagem. Dani, Amanda, Alice e eu fizemos uma pequena caminhada até lá, para mergulhar nas águas que correm geladinhas, no meio da floresta. E se permitir chegar. 

Dia 3 — 8 de dezembro, domingo

Puwe, Marcelo Pietrafita, Alice Fortes, Daniel Cunha e Lia Beltrão em primeira conversa de grupo durante almoço.

Choveu a manhã inteira uma água muito bem-vinda e o Puwe chegou de viagem junto com o antropólogo Marcelo Piedrafrita. Marcelo veio especialmente para nos auxiliar a fazer uma leitura das repercussões sociais do projeto. Ele vive em Rio Branco desde 1990 e conhece profundamente a história e a luta dos povos indígenas do Acre, tendo participado do processo de demarcação do território Puyanawa. 

Depois do almoço – um peixe pescado aqui no açude – saímos para fazer uma visita à família de Puwe e Varí na aldeia Ipiranga. Fomos também no famoso Chapéu do Cacique Joel, para nos apresentarmos formalmente ao cacique – um rito imprescindível para qualquer um que esteja visitando o território. O chapéu é uma construção de madeira e palha, circular, muito bonita e bem feita – me lembra um coreto de cidade de interior mas com uma função bem mais definida. O cacique fica numa rede (vermelha e preta, porque flamenguista) e as pessoas da comunidade costumam ir lá, sentar nos bancos que fazem parte da construção, e falar com ele sobre tudo. 

Quando entramos, a alegria do cacique em encontrar Marcelo ficou visível. Os dois se atualizaram sobre a família um do outro, falaram de futebol, mas sobretudo conversaram bastante sobre política. Além de cacique da aldeia, Joel é também vereador no município de Mâncio Lima e comentou do quanto os projetos pararam nestes meses que antecederam as eleições. Joel foi um dos vereadores mais votados da cidade, e entrou em seu sexto mandato. 

Depois fomos convidados para a festa de aniversário de uma jovem da aldeia. Já era noite quando chegamos e ela e os amigos estavam reunidos em volta de uma árvore, com uma única lâmpada iluminando o suficiente para que os músicos enxergassem os instrumentos: violão, caixa, maracá. Os jovens cantavam músicas em sua própria língua – a maior parte de autoria deles mesmos. Tomavam  caiçuma (uma bebida fermentada feita de macaxeira) e cantavam com uma força e alegria que moveram a gente por dentro. Daniel gravou algumas músicas e pretendemos usar no podcast. 

Dia 4 — 9 de dezembro, segunda

Pela manhã, caminhamos pela área de reflorestamento do outro lado do açude. O objetivo era começar a atividade de escuta em campo, juntamente com Marcelo, e começar sendo guiados por Puwe e Marga pela experiência de implementação do Sistema Agroflorestal que tem acontecido desde 2023. Vimos todo tipo de árvore que vocês possam imaginar – muitos ingás, jatobás, sumaúmas, açaizeiros, buritizeiros. O terreno não é fácil. Está desmatado desde a época dos “patrões”, antes do processo de demarcação acontecer e ao longo das últimas décadas foi sempre utilizado para gado. Ainda assim, nossas mudas estão firmes e fortes. 

À tarde conversamos ao redor de uma grande mesa de madeira. A ideia era ouvir Puwe, Varí e Marga contarem a sua própria versão de como esse projeto começou, tudo que faz parte dele. Foi uma riqueza só! A rede de causas e condições para esse pequeno projeto poder nascer é enorme e é bonito de ver como também é muito anterior à nossa própria chegada. 

À noite, fizemos mais uma visita ao Cacique Joel. Ele estava rodeado por muitas pessoas da aldeia. Falavam de futebol, do campeonato indígena que está acontecendo, de um grande encontro estadual que vai ser realizado na aldeia em breve, das novas leis das escolas indígenas. Como o Dani falou outro dia pro Marcelo: “eu não tinha ideia que era tão complexo ser indígena no Brasil”. Ali no chapéu do Cacique fica claro – as leis, as políticas, as organizações não governamentais, as pesquisas, cada coisa demandando uma cuidadosa avaliação.

No fim do encontro, tivemos a chance de falar com ele sobre o porquê de estarmos ali. Do plantio e até da Rádio Novelo – aproveitei para reforçar o pedido pra ele nos dar uma entrevista. Quanto voltamos para o Ninho, já passavam das 23h30.

Dia 5 — 10 de dezembro, terça

Visitamos três plantios consorciados ou sistemas agroflorestais que estão nascendo ao redor do Ninho do Beija-flor. Essa é na verdade uma das melhores surpresas da nossa visita. Viemos para observar as repercussões sociais do plantio e percebemos como o Ninho do Beija-flor está criando o que o Marcelo Pietrafita, o antropólogo que está nos acompanhando, chamou de uma “cultura de reflorestamento”. Esse processo não nasceu exclusivamente do nosso projeto. Puwe e Varí já têm uma longa trajetória na direção de uma outra relação com a terra e há inúmeros fatores que contribuem para esse florescimento. Mas é inegável que o plantio que está sendo sustentado aqui tem sim uma influência importante no fato de que muitas famílias estão escolhendo sair da aldeia, onde não há tanto espaço para plantação, e vir com a intenção de fazer não apenas roçado mas um reflorestamento dessas áreas de campo.

Nós visitamos três plantios, mas há no total 12 famílias que estão em processo de mudança ou já se mudaram para a região do Ninho do Beija-flor nos últimos anos – especialmente nos úlimos dois.

Ontem também conseguimos fazer duas entrevistas importantes para o podcast. Uma com Claudionor Puyanawa (o Marga), um dos principais cuidadores das nossas árvores, e outra com Carol Puyanawa, uma jovem liderança que nos deixou de queixo caído com sua inteligência e sensibilidade.

À noite, Puwe, Varí, Marcelo, Alice, Dani e eu ficamos reunidos até depois das dez, localizando em um mapa essas 12 famílias e conversando sobre o papel do Ninho do Beija-flor nisso tudo. 

Ah, e no meio do dia, ainda deu tempo de tomar um banho no igarapé!

Dia 6 – 11 de dezembro, quarta

Além das entrevistas maravilhosas que fizemos com Puwe Puyanawa e sua filha, Rosane, a gente conversou com dois agentes agroflorestais indígenas, o José Marcondes e o Lucas Puyanawa. 

O objetivo da conversa era ouvir um pouco da visão deles sobre essa arte que é levantar floresta, os desafios que eles têm observado ao longo de anos de experiência com proteção e reflorestamento e também escutar da visão deles sobre nosso projeto. 

Para nós um ponto chave era saber se, na visão deles, o plantio tem mesmo servido de inspiração para outras famílias da aldeia e a resposta dos dois foi um seguro “sim”. :)

No final, o Lucas fez uns vídeos e fotos com drone – para embelezar nossa campanha. Abaixo você pode ver duas dessas fotos, onde dá pra ver uma parte do plantio e também quanta área de campo ainda está esperando por mudas. Temos muito trabalho pela frente!!!

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Dia 7 — 12 de dezembro, quinta

Desde que fizemos a primeira conversa por Zoom com Marcelo, ainda em agosto deste ano, imaginei que ele seria uma importante fonte para ser entrevistada no podcast sobre a retomada do povo Puyanawa. E foi hoje finalmente que isto pôde acontecer. Nos sentamos em uns bancos de madeira colocados à sombra de umas árvores e bastou perguntar o nome, idade e o que ele faz, que Marcelo falou quase uma hora sem intervalo. Ele nos deu de presente um panorama do processo de colonização do Acre, que começa no fim do século XIX, começo do XX – ou seja, é incrivelmente recente. Ouvir Marcelo é também entender o papel crucial do Estado em um território de tanta disputa. Como se não bastasse, ele também viveu junto aos Puyanawa importantes momentos nesse processo de “reinvenção” (no melhor sentido do termo) de sua própria identidade e tem uma leitura sofisticada desse processo. 

À tarde, fomos para a Arena para acompanhar os preparativos para a realização da Assembleia da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ). Vão ser mais de 90 pessoas: representantes do ICMBio, da FUNAI, do Governo do Estado do Acre, e dos doze povos diferentes que são parte dessa organização. 

Dia 8 – 13 de dezembro, sexta

Hoje, o Ninho do Beija-flor recebeu novos visitantes. Lá de Marechal Taumaturgo, do Território Indígena Kampa do Rio Amônia, chegaram cerca de vinte Ashaninkas para participar da OPIRJ. Entre eles, está Moisés Pyiãko, que nós da comunidade o lugar já tivemos a chance de conhecer. Moisés é uma grande liderança espiritual, teve um forte papel no processo de retomada dos Puyanawa, mas esta sua participação na OPIRJ é mais “terrena”: ele veio para contar um pouco da experiência bem-sucedida dos Ashaninka em elaborar e executar seu Plano de Gestão Territorial ou, como eles preferem chamar, Plano de Vida. Outros povos vão fazer a mesma coisa e compartilhar o seu uso dessa ferramenta que colocou o Acre na vanguarda das políticas públicas sobre proteção da floresta. 

Hoje foi também o dia que nos despedimos do Marcelo e gravamos alguns vídeos para a campanha de arrecadação. 

Dia 9 – 14 de dezembro, sábado

Participamos na parte da manhã da abertura da Assembleia da OPIRJ (Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá). Para nós, foi um presente poder dar uma espiada neste movimento de organização social dos povos indígenas da região, no entrelaçamento das políticas públicas. Um tema quente que estará em discussão nos dias seguintes, e que ativou a minha curiosidade e a de Daniel, foi a discussão sobre a captação de recursos de crédito de carbono. O governo do Estado do Acre tem se destacado internacionalmente nessa iniciativa mas povos indígenas como os Ashaninka e outros têm defendido “a Consulta Livre, Prévia e Informada às etnias, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nas negociações de acordos governamentais sobre o mercado de crédito de carbono nos territórios, os mais preservados na Amazônia” (leia mais aqui). Discutir esse tema, junto a importantes órgãos governamentais e o Ministério Público estava na pauta dos dias seguintes da Assembleia.

Ainda que o encontro estivesse maravilhoso, depois de almoçar e papear um pouco com o Moisés, Dani e eu partimos de moto para a aldeia Barão para fazer as duas últimas entrevistas da viagem. As entrevistadas foram Maria José e Dienita, mãe e irmã de Carol Puyanawa, que estiveram diretamente envolvidas nos eventos que marcaram o processo de retomada espiritual do povo Puyanawa em 2010. 

Dani e eu fomos recebidos por Dona Maria José com um vinho de buriti (que é na verdade um suco deliciosamente cremoso). Quando estávamos prestes a começar a entrevista, uma chuva amazônica tomou conta de tudo: o barulho no teto de zinco não deixava a gente se escutar, e a água da rua veio com tanta força que começou a entrar no terraço da casa. Ver aquelas três mulheres, Dona Maria e suas duas filhas, rindo e retirando com rodos pequeninos aquela água que invadia tudo, foi das cenas mais bonitas da viagem. Depois da chuva, já com terraço seco, fizemos as entrevistas. 

Voltamos para casa com o sol se pondo e com chuva se anunciando de novo. Minha última noite na Amazônia foi atravessada na garupa de uma moto conduzida por uma jovem indígena que, em meio a raios e trovões, continuava a me contar os detalhes da história da sua família e do seu povo que eu ainda não tinha ouvido.

Dia 10 — 15 de dezembro, domingo

Nosso último café da manhã foi cheio de amor. A sensação é de que logo logo estaremos ali de volta, construindo mais, sonhando mais, que tudo está só começando. Nos despedimos com o coração cheio. Entramos no carro com Kessler, que nos trouxe também na ida e que, conforme prometido, nos deu de presente a melhor farinha de mandioca do Brasil. Sobrevoei a floresta, como sempre, chorando – um choro que tem tristeza, alegria, tanta coisa misturada, mas que tem sobretudo o reconhecimento da sorte que temos de viver o que vivemos. E viver isso só foi possível (de verdade!) porque estamos em comunidade. Mais de 350 pessoas estão apoiando financeiramente essa segunda fase do projeto de reflorestamento, e se não cada uma delas, não faria sentido algum estar na Amazônia. Além disso, os custos da minha viagem e da de Dani (que não são baixos!) foram patrocinados por mais de 60 pessoas, em uma campanha que fizemos por dentro da comunidade. Por onde a gente andava, a gente andava com todo esse povo. E a cada um (provavelmente você!), a gente agradece de coração. 

Seu apoio será dobrado!

Este é um convite para você fazer parte dessa história. Ao se unir a nós, você não só apoia o reflorestamento da Amazônia, mas também ajuda a escrever um novo capítulo na defesa do nosso planeta.

Apoie a segunda fase do nosso projeto e veja seu impacto dobrar: para cada real doado, um doador anônimo contribuirá com mais um, duplicando nossa ação de reflorestamento!