Meditando com as emoções (Pema Chödrön)

por Gustavo Gitti

Pema Chödrön
Pema Chödrön (quando era chamada de Deirdre Blomfield-Brown)

Todos nós temos experiências emocionais que parecem aterrorizantes e, para experimentarmos nosso estado natural, temos que estar dispostos a experimentar essas emoções, e realmente experimentar nosso ego e nossa fixação ao ego. Isso pode parecer perturbador e negativo, ou mesmo insano. A maioria de nós, consciente ou inconscientemente, gostaria que a meditação fosse uma sessão de relaxamento, em que não precisássemos nos relacionar com o desconforto. Na verdade, muitas pessoas equivocadamente entendem que a meditação se trata disso. Elas acreditam que a meditação inclui tudo, exceto aquilo que parece ruim. E se algo parece ruim, você deveria rotulá-lo de “pensando” e afastá-lo para longe ou bater na sua cabeça com um martelo. Quando você sente o menor indício de pânico prestes a se manifestar ou experimenta algo desagradável, você usa o rótulo “pensando” como uma maneira de reprimir isso, e volta depressa ao objeto da meditação com a esperança de que você nunca tenha que entrar nesse lugar desconfortável.

Ponlop Rinpoche disse: “No processo de descoberta da natureza búdica, no processo de descoberta da qualidade aberta e não fixada de nossa mente, temos que estar dispostos a sujar as nossas mãos.” Em outras palavras, ele dizia que precisamos estar dispostos a trabalhar com nossas emoções perturbadoras, aquelas que parecem ser totalmente sombrias. No entanto, Ponlop Rinpoche acrescentou algo realmente importante a essa afirmação. Ele disse que, sem que tenhamos uma experiência direta de nossas emoções, nunca poderemos tocar o coração da natureza búdica. Nunca poderemos realmente ouvir a mensagem do despertar. A única saída, por assim dizer, é através. Mas o que significa essa palavra “experimentar”? E como podemos experimentar emoções? Como podemos experimentar essa coisa negativa, perturbadora e inquietante que geralmente evitamos? Como podemos sujar nossas mãos com elas?

Ponlop Rinpoche diz: “É apenas ao saborear verdadeiramente sua experiência das emoções que você sente o gosto da iluminação”. A natureza búdica e o estado natural não consistem apenas de emoções felizes e doces; a natureza búdica inclui tudo. É a calma e a perturbação, a agitação e a quietude; é o amargo e o doce, o confortável e o desconfortável. A natureza búdica inclui a abertura para todas essas coisas, e é encontrada no meio de todas elas.

Como percebemos de maneira dual e temos esse pensamento do tipo “isso ou aquilo” pelo qual rotulamos as coisas de “boas” ou “ruins”, nos fechamos quando uma energia forte surge. Associamos essa energia forte a pensamentos diversos — memórias do passado ou fantasias sobre o futuro — e então acontece algo de certa forma indescritível, o que chamamos de “sentir uma emoção”. Em essência, emoções são apenas energia pura, mas por causa da percepção dualista, nós identificamos a emoção como “minha” e ela se torna muito fixa.

A energia congela. Trungpa Rinpoche disse certa vez: “As emoções são compostas de energia, as quais podem ser comparadas à água, e de um processo de pensamento dualista, que pode ser comparado a um pigmento ou a uma tinta. Quando a energia e o pensamento se misturam, tornam-se emoções vívidas e coloridas. O conceito dá à energia uma localização específica, um senso de relação, que torna as emoções vivas e fortes. Fundamentalmente, a razão pela qual as emoções são desconfortáveis, dolorosas e frustrantes é que a nossa relação com elas não é muito clara”.

Uma das maravilhosas artes de Valentina Fraiz para nosso grupo de estudo do livro Quando tudo se desfaz, em 2019

Isso significa dizer que a energia em si não é um problema. Sempre associamos nossas emoções a pensamentos — temos medo de algo, ou estamos com raiva de alguém, ou nos sentimos sozinhos, ou envergonhados, ou desejosos em relação a nós mesmos ou a outra pessoa. Nossas emoções produzem muita conversa mental — e, na minha experiência, muitas vezes é difícil discernir entre o que é o pensamento e o que é a emoção. Em qualquer período de meditação, em qualquer meia hora de nossas vidas, há muitas coisas que vêm e vão. Mas não precisamos nos esforçar tanto para resolver tudo. Não precisamos atribuir tanto significado ao que surge e também não precisamos nos identificar com nossas emoções tão intensamente. Tudo o que precisamos fazer é nos permitir experimentar a energia — e, com o tempo, ela se moverá através de você. Não tenha dúvida. Mas precisamos experimentar a emoção — não pensar sobre a emoção. É o mesmo que tenho comentado sobre a respiração: sentir a respiração entrando e saindo, tentar encontrar uma maneira de inspirar e expirar sem pensar na respiração, conceituar a respiração ou observar a respiração.

Eu normalmente descrevo isso como ter uma “sensação física” das nossas emoções. Talvez esse termo “sensação física” [“felt sense”, no original] não seja o termo correto para você. Por exemplo, você pode ter um experiência de pavor; você provavelmente carrega um enredo sobre estar com medo de algo que está prestes a acontecer. Mas se existe um jeito que você possa interromper a discursividade através da sua prática de meditação, mesmo que seja por alguns poucos momentos, então você poderá ter uma experiência real de pavor — uma experiência não-verbal. Você pode permitir se tornar fisicamente consciente do pavor. Sinta isso; sinta a contração e o aperto. É possível aprofundar-se ainda mais: você poderia ter uma experiência sensorial do pavor como um formigamento ou calor, um frio ou algo cortante em seu peito.

Uma das minhas primeiras experiências de realmente sentir uma emoção foi muito interessante. Eu estava passando por um período de muita aflição, do qual não conseguia escapar. Isso acontece em nossa vida com frequência. A pessoa que disparava essa aflição em mim não ia embora. Foi no Gampo Abbey, onde moro. E nós tínhamos que conviver em alojamentos muito próximos, e o que estava sendo disparado eram antigas lembranças e condicionamentos. É isso que costuma ocorrer com emoções fortes. Há muita coisa contida em nós. Isso pode ser bem irracional. É como se fôssemos cães que ouvem certos sons e surtam. Vemos uma certa expressão facial, alguém nos trata de uma determinada maneira, há exatamente o tom certo de voz ou alguém nos lembra de algo e, do nada, surge toda uma sensação intensa de pavor, raiva ou tristeza profunda. Normalmente, nem estamos conscientes disso, apenas reagimos da maneira que sempre fizemos.

Pema Chödrön

Essa mulher não gostava de mim tão intensamente e não falaria comigo a respeito disso que, nesse caso em particular, o que foi disparado em mim foi um sentimento de desamparo. Essa situação foi trazendo sentimentos de impotência por não ser capaz de ter as coisas sob controle, por não ser capaz de fazer tudo dar certo. Eu não era capaz de fazer ela gostar de mim e nem era capaz de fazer ela conversar sobre isso. Não tinha jeito das minhas estratégias usuais funcionarem, então eu estava ali, despida com esse pavor recorrente. Eu a encontrava nos corredores constantemente; ela andava friamente por ali, e nossa!, isso me trazia o que parecia séculos de dores condicionadas e percebidas.

Eu pensei comigo mesma, “Essa é a minha grande chance. Talvez se eu realmente mergulhar nisso, eu nunca mais terei essa questão surgindo de novo nessa vida ou em outras vidas”. Então em uma certa noite, eu fui para a sala de meditação. Eu fiquei sentada a noite toda porque eu estava imersa em tanta dor e não sabia mais o que fazer. Eu estava imersa em tanta dor que eu não pensei em praticamente nada. Certos momentos, a dor nocauteia completamente os pensamentos; você está sentado na dor e é como se você estivesse sem palavras em todos os níveis.

Enquanto eu estava sentada, eu comecei a ter essa qualidade de experienciar o que eu estava passando com essa mulher. Eu experimentei uma memória corporal de ser uma criança bem pequena, mas não era como se eu estivesse lembrando de uma experiência traumática ou algo assim. Eu me dei conta — em um nível celular — que toda a estrutura do meu ego, toda a minha personalidade, foi construída para nunca ir nesse sentimento em particular. Eu comecei a experimentar um sentimento profundo de inadequação, como seu eu não estivesse OK. Eu percebi que o que eu estava experimentando era uma morte completa do ego.

A partir dessa experiência sentida, eu comecei a me dar conta do poder de ser distraída pelas palavras, de ser distraída pelos pensamentos sobre as nossas emoções. Nós nos distraímos completamente pelas nossas estratégias, as quais são sempre desenhadas para nos distanciar das experiências sentidas. Então, seja uma emoção notável — um tipo de dor central a estrutura do nosso ego como foi a minha — ou seja alguma emoção forte ou até mesmo mais moderada, é tão fácil ficarmos presos e sermos carregados pela história e pensamentos em torno da emoção. A partir daí, as emoções intensificam-se rapidamente e nos escravizam.

Você precisa sujar as suas mãos com as emoções. A meditação nos permite senti-las, vivenciá-las e saboreá-las completamente. A meditação nos traz muitos insights sobre o porquê fazemos as coisas que fazemos e por que as outras pessoas fazem as coisas que elas fazem. A partir desse insight, a compaixão nasce. Esse insight também começa a abrir as portas de entrada para a natureza búdica e para o completa e aberta espacialidade que está disponível quando não estamos bloqueando nossos sentimentos. Quando eu fui capaz de me permitir ter uma sensação das minhas emoções, foi completamente libertador.

Assim como Ponlop Rinpoche disse, “Até que você comece a realmente se relacionar com as coisas desfavoráveis e desagradáveis como parte da sua meditação — elas não são a coisa toda — mas até que você comece a trabalhar com elas, você realmente não terá a qualidade de estar no caminho do despertar.”

Uma das coisas que nos faz ficar tão perdidos em nossas emoções é o fato de associarmos histórias a elas. Faz algum tempo, descobri que a rápida intensificação das emoções — quando você está imerso no rio, levado pela correnteza, perdendo toda a perspectiva, totalmente arrebatado pela solidão, raiva e desespero — é alimentada pelo enredo. Nossas emoções são como a pedra lançada na água, sem as ondulações. Uma emoção sem história é imediata, afiada e crua. A experiência direta da emoção não cria ondulações. Mas com o enredo, as ondulações se intensificam e vão cada vez mais longe e se transformam em ondas e ciclones. O enredo realmente agita as coisas. Sabe quando você coloca uma música só para chorar? Você toca uma música específica e fica saboreando a tristeza. Nossas histórias são assim, exceto que não precisamos de música. Temos a mente e nossos pensamentos, e eles podem acelerar as emoções. Mas se usarmos nossas emoções como objeto de meditação, como amigas que nos apoiam, podemos nos sentar às margens do rio e observar.

No Gampo Abbey, existem mastros nos penhascos acima do oceano. Nós continuamente experimentamos colocar bandeiras neles, afinal esse é o objetivo dos mastros. Às vezes o clima está bem ameno e nós experienciamos essas bandeiras adoráveis na quietude do vento leve. Em outros momentos, ocorrem ventos incrivelmente fortes e as bandeiras se desfiam em um minuto. A imagem do mastro e da bandeira são uma ótima analogia para trabalhar com pensamentos e emoções, porque o mastro é firme e seguro enquanto que os ventos estão carregando as bandeiras por todo lado, rasgando-as em pedaços — geralmente essa é a nossa situação. Nós somos as bandeiras, e o vento está apenas nos carregando por aí. Nós estamos sendo carregados para cá, para lá e para todo o lugar. E nossas emoções vão se intensificando rapidamente, nossos pensamentos estão por todo o lugar. Mas usar pensamentos ou emoções como objetos da meditação é experimentar a vida através da perspectiva do mastro. No Gampo Abbey, nós nunca temos que adquirir novos mastros. Mesmo com ventos na velocidade de furacões, os mastros se mantém em cima dos penhascos.

Tradução de Alessandra Granato, Juliana Kurokawa, Renata Pereira e Marcia Yokota. Revisão de Gustavo Gitti. Publicado originalmente na revista Tricycle em 2013.

A tradução do texto acima surgiu como parte do estudo online do livro Quando tudo se desfaz: orientação para tempos difíceis, de Pema Chödrön. Foram 13 semanas com participantes de todo canto do Brasil e de outros países. Todos os vídeos, áudios, meditações guiadas, práticas sugeridas e referências de aprofundamento estão disponíveis para quem entrar agora no lugar: olugar.org