Nossos últimos dias
Estamos vivendo nossos últimos dias. Parece forçado ou romântico falar assim, mas é verdade. O problema é justamente esse: parece que não é. E assim, acreditando em uma permanência sem base alguma na realidade, seguimos em uma corrida que só destrói a vida, incapazes de gerar alegria e apreciação.
Cinco exemplos recentes do poder de contemplar a impermanência
1) No penúltimo dia de 2019, a Folha publicou um relato de Gilberto Dimenstein, que descobriu um câncer e foi obrigado a contemplar morte e impermanência. Só de ler, fica evidente como esse contato com a realidade pode transformar a nossa vida.
“Grande parte da minha vida foi marcada pelo culto a bobagens: ganhar prêmio, assinar matéria na capa, o tempo todo pensando no próximo furo. É como se estivesse passando por um lugar lindo num trem em alta velocidade, vendo tudo borrado.”
—Gilberto Dimenstein
2) Um outro exemplo que presenciei em janeiro de 2020: cheguei com a família de minha esposa em Japaratinga (AL) no fim do ano e conhecemos Rossini, um senhor incrivelmente interessado e amoroso, com 70 e poucos anos. Ele almoçou duas vezes conosco, passamos a virada juntos em sua pousada, me chamava de “filósofo Gustavo”, já tinha virado parte da família… Poucas vezes vi alguém convocar tantos brindes! Às vezes três em menos de 10 minutos, celebrando coisas diferentes. E não estava bêbado. Era como se a apreciação fosse sua principal linguagem.
No dia seguinte ao nosso último encontro, estávamos nos preparando para fazer pizza à noite com ele… E ele havia nos convidado para ouvir Mantovani contemplando o anoitecer. Não deu tempo. Pela manhã, avistamos um helicóptero e uma ambulância chegar na praia. Fomos correndo até sua casa, mas ele já estava morto. Rossini tinha ido ao mercado, chegou com as compras na cozinha e teve um ataque cardíaco fulminante. Vimos seu corpo sair, passando a poucos centímetros de nós. Aí caiu a ficha: tivemos a sorte de participar de seus últimos dias! Os pais da Isabella se comoveram tanto que dirigiram por 7h para presenciar o velório e a cremação, na qual incontáveis pessoas falaram no microfone sobre o tamanho da bondade de Rossini. Todos chorando muito. Em um momento todos cantaram “Canção da América”, de Milton Nascimento, uma de suas músicas favoritas.
Nos dias seguintes, o pai da Isabella não parava de falar: “Parece um filme, a vida é muito maluca… Ele estava aqui ontem, como pode isso?”
As práticas de contemplação da impermanência existem para que a gente possa ser tocado pela realidade exatamente agora, sem precisar de uma doença ou de alguém morrendo ao lado para nos acordar.
3) A querida Eve Ekman enviou uma newsletter contando que também está com essa prática brilhando:
“2020 está começando com uma reflexão profunda sobre impermanência e mudança. Ainda que todos nós saibamos da natureza dinâmica de todas as coisas, desde as nossas emoções momentâneas até o estado do mundo, nós facilmente esquecemos. Eu tenho passado um tempo cultivando uma lembrança diária da impermanência e da mudança, usando alguns dos ensinamentos simples e profundos sobre a meditação da morte e do morrer. Em vez de morbidez, estou encontrando uma verdadeira alegria e um entusiamo por cada dia. Lembrar a verdade da mudança e da impermanência a cada dia está me levando a uma gratidão natural e uma clareza do que realmente importa.”
—Eve Ekman
4) No começo de 2020, publicaram no Instagram do museu Tate uma citação maravilhosa da pintora Paula Rego, contando como sua mãe contemplava a impermanência:
“Toda mudança é uma forma de liberação. Minha mãe costumava dizer que uma mudança é sempre boa, mesmo que seja para pior.”
—Paula Rego
5) Por fim, veja que maravilhoso com um grande mestre, Dzongsar Khyentse Rinpoche, contempla a impermanência:
“De modo geral, apreciamos apenas metade do ciclo da impermanência. Podemos aceitar o nascimento, mas não a morte; aceitar o ganho, mas não a perda; o fim da semana de provas, mas não o início. A verdadeira liberação vem da apreciação do ciclo como um todo, sem querer agarrar aquelas coisas que consideramos agradáveis. […]
O destemor nasce quando você consegue apreciar a incerteza, quando você tem fé na impossibilidade de componentes interligados permanecerem estáticos e constantes. Você chegará ao ponto em que, de um modo muito verdadeiro, estará preparado para o pior ao mesmo tempo em que abre espaço para o melhor. […] Você passa a ter dignidade e majestade.”
—Dzongsar Khyentse Rinpoche (no livro “O que faz você ser budista?”)
Sobre isso, além do livro A morte é um dia que vale a pena viver, da querida Ana Claudia Quintana Arantes, recomendamos Presente no morrer, da Roshi Joan Halifax, e Living is dying, de Dzongsar Khyentse Rinpoche.
Se quiser mais pontes para se aprofundar nessas práticas e, principalmente, se quiser praticar com continuidade e de modo coletivo, seguimos toda semana em uma comunidade online com pessoas de todo canto do Brasil e do mundo: olugar.org