Olhe de novo
Ouvi esse exemplo do erudito tibetano Geshe Dadul Namgyal em um curso sobre madhyamaka, na Palas Athena (com organização da Tibet House Brasil), em São Paulo. Fiz esse experimento algumas vezes e agora compartilho com vocês.
Quando o céu estiver completamente limpo, sem nenhum traço de nuvem, experimente definir um pontinho no meio da expansão do azul (você pode apontar com um dedo ou apenas ancorar os olhos). Fixe no ponto por alguns segundos e então desvie o olhar para o chão. Depois volte-se para o céu e tente localizar exatamente o mesmo ponto que você havia olhado.
Como o pontinho nasceu junto com o seu olhar, como não havia um ponto no meio do céu existindo por si mesmo, é impossível fixar os olhos e ver o “mesmo ponto”. Não há tal coisa. O ponto era uma mera aparência, ele não chegou a se consolidar no espaço do céu, mesmo enquanto você olhava. Para achar que o ponto está realmente lá, é preciso teimar, forçar a barra, franzir a testa e nunca desviar o olhar. Mesmo não estando lá, enquanto nos fixamos à aparência do ponto, é possível mapear todo o céu a partir do ponto, é possível conectar diferentes pontos, é possível pensar, falar, lembrar, sentir, tomar decisões… É possível construir uma vida inteira a partir do pontinho que nunca chegou a ser.
Quando olhamos para uma pessoa e nos apaixonamos ou nos frustramos, é isso que está acontecendo. Quando olhamos para uma situação, é isso que está acontecendo. Quando olhamos para nós mesmos, é isso que está acontecendo. Quando olhamos para o mundo, é isso que está acontecendo. O tempo todo é isso que está acontecendo.
Sempre que algo parece existir de modo definido, na verdade essa aparência é inseparável de nosso olhar, de nossos referenciais, de nosso mundo interno. É coemergente, não está lá fora por si só. Quando dizemos “Ele está magoado comigo”, “Tenho pavio curto”, “A situação é muito pesada e complicada”, “Estamos casados há 15 anos”, isso é verdade tanto quanto é verdade que localizamos um ponto no céu: aquilo aparece e temos a sensação que é assim mesmo. Mas se piscarmos (e antes fizermos muitas práticas de estabilidade e de sabedoria), ao olhar de novo talvez encontremos um espaço aberto exatamente onde havia mágoa, impaciência, peso, complicação.
A solidez só se sustenta enquanto nós a sustentamos — para odiar alguém, por exemplo, é preciso contar a mesma história de novo e de novo. A manutenção do sofrimento se dá por dois processos: achamos que aquilo é auto-existente e reagimos. Seriedade gera reatividade, reatividade gera seriedade — um processo recursivo.
Se investigarmos assim, vamos ganhar a confiança de que não há nenhuma pessoa e nenhuma situação realmente fechada, condenada, negativa, bloqueada, marcada, definida, ainda que nós estejamos vendo apenas fechamento e limitação. Enquanto a abertura não aparecer, enquanto só encontrarmos pontos sólidos, podemos confiar: tudo segue aberto.
Publicado originalmente na coluna “Quarta pessoa” da revista Vida Simples (ed. 180, fevereiro 2017).
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