Pés de jambo
Há algumas semanas estudamos um capítulo do livro Como vivemos é como morremos, da Pema Chödrön, chamado “Memória passageira”.
Num dos trechos, ela fala:
“Contemplar a mudança contínua é uma experiência comovente. Pode ser triste ou assustadora. Às vezes, quando estou num longo retiro e todos os dias faço praticamente a mesma coisa, de repente me dou conta: ‘É domingo de novo? Como pode? Acabou de ser domingo!”. Eu quero que o tempo vá mais devagar. Sua velocidade simplesmente me deixa sem fôlego. Essa sensação é especialmente forte em minha idade avançada. Quando me lembro da infância, o verão era bem longo. Agora acaba num piscar de olhos. É bom assimilar essa sensação. É preciso sentir e permitir a entrada dessa sensação vulnerável e delicada.”
“Quando me lembro da minha infância, o verão era bem longo.”
Ao ler isso, lembrei de uma experiência que tive em retiro. Dizem que em retiro, quando a água turva da nossa mente assenta um pouco, lembranças podem vir de muito, muito longe — coisas que você não tinha ideia que estavam guardadas. Uma praticante mais experiente tinha me contado sobre isso uma vez. No caso dela, não foi uma lembrança, mas uma sensação que emergiu, um terror momentâneo que atravessou seu corpo e sua mente e depois se foi. Não à toa a sanga é uma das Três Joias, tão importante quanto os professores e os ensinamentos. Essas partilhas sobre a prática podem nos ajudar a mapear o que nós mesmos atravessamos e a fala dela foi o que lembrei, no momento em que precisava, anos depois.
No meu caso, o que me atravessou foi uma memória. Era uma imagem, mas era também um mundo inteiro — uma vida, como diz a Pema Chödrön neste capítulo — algo que eu nunca antes tinha acessado.
Era eu criança. Estava entre pés de jambo, em um terreno com declive, uma casa ao fundo e uma piscina perto. A casa pertencia a uma mulher chamada Dona Dora. Todo mundo em Areia, aquela cidadezinha no interior da Paraíba onde me criei, a conhecia e aparentemente o que estava acontecendo ali, de muitas crianças da cidade entrarem no seu terreno, comerem as frutas, brincarem, entrarem na piscina, era comum. Era só a primeira vez que eu estava participando. Saí daquela cidade aos 13 anos, e Dona Dora nunca esteve nas conversas da minha família. Nunca mais falei seu nome, nem comi jambo do pé. Mas de repente, aquele mundo, ele todinho, a doçura do jambo, aquela casa aberta para todos, a abundância de amor e fruta, a água da piscina, a luz que batia na gente, pés descalços no chão, Dona Dora, tudo emergiu junto em total clareza dizendo: “Isso se foi. Se foi. Não volta mais”.
Sim, podemos ser gratos pelo que vivemos, e meu deus, como eu sou — o que recebi na infância não foi pouco. Mas não foi gratidão que me fez chorar, e muito, quando aquela lembrança veio. Foi uma tristeza profunda. Uma tristeza que tinha uma qualidade nova: era maior, mais cálida, e não me fazia fugir. Mas me fez sentir sozinha, talvez desgarrada. Lembro de pensar: se aquele mundo morreu, o mundo da minha infância, quem sou eu? Lembro de solidão e medo. Mas lembro também de vir à mente o relato dessa outra praticante, e pensar: é como foi para ela, algo está me atravessando. E talvez isso me permitiu me esticar mais um pouco para ficar com aquilo, com a verdade do fim, de que sim, aquele mundo morreu. Na verdade, estou no exercício de me esticar nessa experiência até hoje, enquanto escrevo. Escrevendo as palavras da Pema Chödrön dentro de mim:
“É bom assimilar essa sensação. É preciso sentir e permitir a entrada dessa sensação vulnerável e delicada.”
Na conversa que tivemos em comunidade, compartilhamos memórias recentes: o começo, o meio e o fim de algo que aconteceu naquele mesmo dia. Uma mini-vida, mas uma mini-vida inteira — nascimento, desenvolvimento e morte — que se foi para sempre.
“Brinquei de monstro de cócegas com meu filho, depois saí para fazer um café.”
“Fui visitar uma amiga no hospital, conversamos e depois voltei para casa.”
Vimos, com a ajuda da Pema Chödrön, como a tristeza, a sensação vulnerável e delicada que eventualmente surge de contemplarmos esses fins, é fruto apenas da nossa “resistência ao fluxo contínuo da vida” e por isso um grande indicativo de que estamos no caminho certo. É só seguir.
Quer estudar esse livro em comunidade?
Este relato de Lia Beltrão faz parte do estudo do livro Como vivemos é como morremos, de Pema Chödrön. Estamos seguindo juntos por 22 semanas estudando esta obra-prima! Vamos adorar te receber na nossa comunidade online.