Uau…

por Gustavo Gitti

Recentemente viajei para São Miguel dos Milagres (AL). Quando busquei pelo impulso que me levou a comprar as passagens, não encontrei nada. Não é maluco que um desejo fugidio e insubstancial seja capaz de direcionar minha vida?

Andamos por aí como se soubéssemos quem somos, onde estamos e o que está acontecendo. No entanto, se eu dispensar as teorias, apenas com minha experiência imediata em primeira pessoa, sequer lembro de ter nascido! Apareci do nada como num sonho. É um milagre. Ao estudar ciências cognitivas, a incerteza aumenta: ninguém sabe ainda como se dá a experiência da cor, como surge a sensação de “eu” ou mesmo a consciência. A explicação biológica só deixa uma gravidez ainda mais inexplicável. As descrições psicológicas de um relacionamento não reduzem o mistério: como é que nasce um namorado? Sinto que algo muda, mas se investigo não localizo nada que possa validar a frase “Estou namorando”. Onde exatamente está esse namoro que parece tão real?

O monge budista Thich Nhat Hanh diz: “Para que as coisas se revelem a nós, temos de estar dispostos a abandonar nossas visões sobre elas.” Pensamos, conversamos, lemos, ruminamos, reagimos, mas quase nunca olhamos diretamente para nosso mundo interno. Sofremos de falta de curiosidade.

Quando tomo um café com alguém vivendo uma complicação, silenciosamente desejo que, pelo menos por alguns segundos, a pessoa relaxe e olhe para tudo sem nenhum tipo de “mimimi” ou comentário, a partir de uma mente afiada, penetrante, despida, aberta, como uma grande pergunta. Se ela fizesse isso, provavelmente diria: “Uau, estou super agarrada, não é incrível?” Talvez ela até sorrisse, mesmo sem nada ter sido resolvido. Somos capazes de passar décadas enredados, reagindo, reagindo, reagindo, sem nunca parar e investigar a dança da realidade.

Se soltamos o conteúdo da história, o que é o ciúme? Peito frio, ausência de fome, sono perturbado, o que mais? Se ficamos bem quietos, sem fazer nenhum grande movimento, o que acontece com o ciúme? Todas as aflições surgem e passam muito rapidamente. Elas só se agigantam porque reagimos sem nunca parar e observá-las diretamente.

Onde está o passado? Onde está o ex que parece estar na foto do Facebook beijando outra pessoa? O que é isso que você chama de mágoa, paixão, trauma, culpa, propósito, timidez? Qual é a base? Você consegue localizar? Olhe! É assombroso perceber o quanto acreditamos, buscamos ou fugimos de coisas sem solidez, parecidas com fantasmas, hologramas ou miragens.

Experimente acordar mais cedo e olhar para o lado: “Uau, por que essa pessoa estranha volta para essa casa toda noite? Como é que agora parece que ela me deve algo?” Chegar no trabalho: “Uau, esse prédio não é a empresa, as pessoas não são a empresa, mas a empresa está aqui, luminosa, e todas as pessoas se relacionam entre funcionários. Que jogo maluco!” Ou reconhecer um pensamento como pensamento: “Uau, estou começando a ver essa pessoa como um inimigo, que alucinação!”

Que possamos abrir olhos de “Uau” a qualquer momento.

Escrito sob inspiração dos ensinamentos de Lama Padma Samten. Publicado originalmente na coluna “Quarta pessoa” da revista Vida Simples (ed. 164, novembro 2015).

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