Praticando GRAÇA e os Três Princípios em nosso ameaçado mundo (por Roshi Joan Halifax)

por Geovana Colzani

Joan Halifax Roshi

Neste texto, publicado no blog do Upaya Zen Center, a querida professora Roshi Joan Halifax apresenta rapidamente alguns conceitos que estudaremos em seu livro “À beira do abismo”.

Todos os dias, como muitas outras pessoas, sou mergulhada na verdade do sofrimento, seja através da mídia ou pelo encontro direto com aqueles que estão vulneráveis e em grande risco. O que nos pode servir em meio às marés fortes de nossos tempos?

GRAÇA e os Três Princípios são poderosos upayas (meios-hábeis) para trabalhar com o sofrimentos dos outros. Eu aprendi sobre os Três Princípios em meados dos anos 90 com Roshi Bernie Glassman e sua esposa Jishu Angyo Holmes, como meios-hábeis estabelecidos no Budismo socialmente engajado. Os Princípios são Não-Saber, Dar Testemunho, e Ação Compassiva.

Sensei Eve Marko, Roshi Bernie Glassman e Roshi Joan Halifax nos anos 90

Eu desenvolvi a prática GRAÇA dez anos atrás como uma forma de fortalecer o altruísmo e a compaixão ao encontrar o sofrimento. GRAÇA é um mnemônico que envolve cinco etapas: Grupar a atenção, Relembrar a intenção, Alinhar-se consigo e com o outro, Considerar o que servirá, Agir e acabar.

Aqui, eu ofereço uma forma de trançar essas duas práticas juntas, de forma que elas possam fortalecer uma à outra.

Não Saber

Os Três Princípios começam com o “Não-Saber”. Quando sinto que as qualidades mentais da compaixão e do altruísmo estão se desdobrando na minha experiência, eu me pergunto: Como posso nutrir a mente de principiante ao encontrar o sofrimento? Normalmente, preciso de uma pausa para aterrar e estabelecer o corpo. Então, entro em contato com a minha motivação e sinto meu corpo, coração e mente sem julgamentos. Esses passos geralmente me levam para um espaço mais aberto de “Não-Saber”.

Como faço isso? Eu “grupo minha atenção” focando na respiração, trazendo minha atenção para o corpo para aterrar — o “G” de GRAÇA. Então, “relembro minha intenção” (o “R” de GRAÇA), relembrando a minha aspiração de servir. Aqui, posso me perguntar: Estou presa na armadilha do preconceito do altruísmo? Por que, realmente, eu quero servir nesta situação? Eu tenho o que é preciso para servir e não prejudicar?

Então, eu percebo ou me sintonizo com meu corpo, coração, e mente de forma aberta e curiosa (o “A” de GRAÇA), e se eu estou sentindo medo, ou se estou polarizada a favor ou contra (se há superexcitação ou sentimentos fortes de aversão), eu noto isso e solto na abertura do “Não-Saber” trazendo minha atenção de volta para a respiração, novamente aterrando, e assim descansando na abertura para tudo o que está surgindo, soltando as opiniões e expectativas.

Dar Testemunho

O segundo princípio é “Dar Testemunho”. Como posso estar completamente presente para o que quer que surja, quando quero servir a alguém em sofrimento? Nem sempre é fácil, mas é necessário. “Não-Saber” me permite dar testemunho de forma menos tendenciosa. É importante que “costas fortes” (equanimidade) e “frente suave” (compaixão) sejam incorporadas enquanto dou testemunho e presencio o sofrimento dos outros, ao mesmo tempo em que fico presente para meus próprios problemas diante do sofrimento. Retornar de novo e de novo para o aterramento é de grande ajuda — novamente, usando GRAÇA. Assistir como a mente se decide a favor ou contra também é essencial.

É importante notar que “Dar Testemunho” não é igual a ser um espectador, mas é ter a coragem para encarar toda a catástrofe, com humildade, curiosidade, e abertura, e deixar a situação entrar em você completamente. Não é necessariamente a coisa mais fácil a se fazer, mas a prática aumenta a capacidade!

Roshi Joan Halifax sendo presa em ato civil de desobediência,
durante protestos do Fire Drill Friday em dezembro de 2019, foto do Greenpeace.

Ação compassiva

Tomando como base o “Não Saber” e o “Testemunhar”, eu pergunto: O que vai realmente servir, como eu posso servir verdadeiramente (o “C” de GRAÇA), juntando intuição, insight e experiência, de forma aterrada e informada pela clareza, curiosidade e sabedoria? A prática de considerar e discernir também envolve ver as coisas de uma perspectiva sistêmica: sensibilizar-se com a miríade de conexões, causas e condições, o passado, presente e futuro, e perceber as consequências potenciais de agir ou não agir. Isso inclui também não estar apegado aos resultados, portanto, descansar no “Não Saber” e na humildade.

O segundo “A” de GRAÇA, “agir e acabar”, é o Terceiro Princípio, “Ação Compassiva”. Estar aterrado, aberto, cuidadoso, empático, e perspicaz apoia nossa capacidade de servir. Talvez, fazer nada também seja o que vai servir… ou não. Lembro de muitas vezes em que eu estava quase pulando para ajudar, e esse segundo extra de discernimento, uma inspiração e exalação, me levaram a uma ação mais ponderada e coerente com a situação.

Finalmente, é importante completarmos qualquer processo no qual agimos, finalizando com um reconhecimento interno, e talvez também um reconhecimento interpessoal. Esta é a segunda parte do último “A” de GRAÇA.

Roshi Joan Halifax e S. S. o Dalai Lama

O Corpo

Notar nossa experiência física pode ser de muita ajuda, porque o corpo nos dá sinais de alerta quando as coisas não estão alinhadas; aperto no intestino, ao redor do coração, garganta, olhos ou cabeça; uma sensação física de mal-estar, formigamento ou dor, mãos frias, suor, pés movendo-se como se quiséssemos levantar e sair. Ao sentir o corpo, podemos aprender fisicamente quando ultrapassamos o limite. Essa sensação paralisante de aperto no intestino ou peito. Sentir-se dissociado do corpo. Nos vermos fazendo coisas que não gostaríamos de fazer. Estar preso nos pensamentos e racionalizar nosso comportamento e então a sensação de afundar no corpo e se arrepender.

O corpo provavelmente está dizendo que há uma falta de harmonia no que queremos fazer e na razão de querermos fazer. Ou que há uma violação ética ou moral no que estamos fazendo. Ou que provavelmente o melhor é não fazer nada. Ou que estamos nos forçando a servir porque desejamos ser apreciados ou necessários.

Se pararmos, notarmos e mudarmos a atenção para a respiração ou para o corpo, e nos permitirmos ver o que o corpo está falando, podemos evitar cair da borda para a lama do altruísmo que deu errado.

Fotografia de Roshi Joan Halifax

A sombra

Os Três Princípios e GRAÇA também podem trazer à tona a sombra do altruísmo, nos ajudando a perceber a nossa necessidade de sermos necessários e nosso materialismo espiritual. Essas práticas podem nos ensinar quando fazemos as coisas para termos uma recompensa. Se nós fazemos algo de bom para outra pessoa, e desaceleramos e refletimos com atenção sobre nossa motivação, podemos notar que estamos nos elogiando ou precisando de reconhecimento por ajudar os outros.

Nós podemos dizer “olá” para esse pequeno eu, com um toque de humor e não-agressão, enquanto reconhecemos nosso senso de auto-importância, auto-intoxicação, ou necessidades emocionais não atendidas, e guardar isso como uma boa lição aprendida. Para simplificar, nossa motivação para servir os outros precisa ser não-egoísta, e uma profunda e honesta prática como GRAÇA, combinada com os Três Princípios, pode nos ajudar a ver mais claramente quando estamos servindo e quando estamos ajudando e consertando.

No melhor dos mundos, os Três Princípios e GRAÇA envolvem uma busca honesta por: por que, quem e o que. Com sorte, podemos reconhecer nossos impulsos por controlar o comportamento dos outros, uma estratégia que nunca funciona e é outra sombra do altruísmo. Nós podemos também identificar mais facilmente as tentativas dos outros de nos manipular, para então desviar dessas pressões e responder habilmente.

Com tantos desafios neste momento, tanta raiva e angústia, tanta futilidade e desespero com a situação política local e global, milhões de refugiados procurando um lugar para ficar, graves desigualdades sociais e econômicas, o meio-ambiente, e essa pandemia histórica, eu espero que os Três Princípios e GRAÇA possam ser upayas (meios hábeis) para nos apoiar, para encontrarmos o mundo com um maior coração, resiliência e sabedoria.

Quer estudar e praticar a compaixão em comunidade?

Qual a diferença entre empatia e compaixão? Como lidar com tanto sofrimento em nós e nos outros sem colapsar? Diante de tantos problemas sociais e ambientais, fruto de desconexão e ignorância, como podemos nos fortalecer como agentes de compaixão e sabedoria no lugar onde já estamos?

Nos últimos quatro anos, mais de 1000 pessoas de todos os estados do Brasil e de 20 países estudaram juntas os livros Um coração sem medo (Thupten Jinpa), O poder de uma pergunta aberta e A lógica da fé (da própria Elizabeth Mattis-Namgyel) e Quando tudo se desfaz (Pema Chödrön). Dessa vez, vamos nos debruçar por 15 semanas no livro À beira do abismo, de Roshi Joan Halifax, publicado pela editora Lúcida Letra.

À Beira do Abismo é uma verdadeira uma aula sobre compaixão e transformação social, incluindo práticas detalhadas, relatos comoventes e diversas pesquisas científicas reunidas por Roshi Joan Halifax em décadas de sua vasta experiência. Um livro perfeito para o nosso momento no mundo e especialmente no Brasil!

Algumas semanas serão conduzidas por Jeanne Pilli (tradutora do livro e professora de compaixão pelo método Cultivando o Equilíbrio Emocional) e Cristiano Ramalho (formado pelo Treinamento do Cultivo da Compaixão, criado por Thupten Jinpa). Além disso, teremos um encontro especial com Ven. Tenzin Chogkyi e outro com a própria Roshi Joan Halifax!

Teremos também manhãs de silêncio com meditações guiadas, práticas sugeridas e rodas de autoorganização para transformação social.

Veja como será: olugar.org/abismo