Quando tudo se desfaz (Pema Chödrön)

por Gustavo Gitti

Segue abaixo o segundo capítulo do livro Quando tudo se desfaz: orientação para tempos difíceis, de Pema Chödrön, que foi a base de um ciclo online de quatro semanas em nossa comunidade, focado em práticas para lidar com situações difíceis. Se quiser participar, ver e rever estes encontrosn: olugar.org

Pema Chödrön

“Ficar nesse desequilíbrio — com o coração partido, o estômago apertado, o sentimento de desesperança e o desejo de vingança — é o caminho do verdadeiro despertar. Ficar na incerteza, pegar o jeito de relaxar no meio do caos, aprender a não entrar em pânico — esse é o caminho espiritual.”

Pema Chödrön

O monastério Gampo Abbey fica em um local amplo, onde o céu e o mar fundem-se. O horizonte estende-se infinitamente e, nesse vasto espaço, pairam gaivotas e corvos. O cenário é como um enorme espelho que amplia a sensação de não haver esconderijo. Além disso, já que se trata de um monastério, quase não como escapar — não há mentira, trapaça, álcool, sexo. Não há saída.

O Monastério Gampo era um lugar que há muito tempo eu desejava conhecer. Trungpa Rinpoche me convidou para dirigi-lo e então, finalmente, lá estava eu. Estar ali era um convite para testar minha paixão por um bom desafio, já que os primeiros anos foram como estar sendo queimada viva.

O que aconteceu foi que, ao chegar lá, tudo desmoronou. Todas as minhas formas de proteção, todos os meios que usava para iludir a mim mesma e manter minha refinada auto-imagem — tudo isso se desintegrou. Por mais que tentasse, não conseguia manipular a situação. Meu estilo estava deixando todo mundo louco e eu não encontrava um lugar para me esconder.

Sempre me considerei uma pessoa flexível, amável, querida por quase todos. Consegui manter essa ilusão durante boa parte de minha vida. Em meus primeiros anos no monastério, descobri que estava vivendo um certo equívoco. Não que eu não possuísse qualidades. Simplesmente não era uma supermenina-prodígio. Havia investido muito nessa auto-imagem, mas ela simplesmente não se sustentava mais. Todos os meus conflitos estavam expostos, nitidamente e com clareza, ao vivo e em Technicolor, não apenas diante de mim mesma, mas também para todos os demais.

Tudo que ainda não tinha conseguido enxergar a meu respeito havia sido subitamente posto em evidência e, como se não bastasse, os outros estavam livres para expressar sua opinião sobre mim e sobre o que eu estava fazendo. O processo era tão doloroso que eu me perguntava se algum dia voltaria a me sentir feliz. Sentia como se bombas estivessem sendo lançadas quase o tempo todo sobre mim, minhas próprias ilusões explodindo por toda pane. Nesse lugar, onde se desenvolvia tanto estudo e prática espiritual, eu não podia me perder tentando justificar a mim mesma e culpar os outros. Esse tipo de saída não estava disponível.

Lembro das palavras de uma professora, em visita durante esse período: “Quando fizer amizade consigo mesma, sua situação também se tornará mais amigável”.

Eu já havia aprendido essa lição e sabia que essa era a única maneira de prosseguir. Costumava manter, pregado na parede, um cartaz que dizia: “Só encontraremos aquilo que é indestrutível em nós à medida que nos expusermos cada vez mais à destruição”. De algum modo, mesmo antes de conhecer os ensinamentos budistas, sabia que esse era o espirito do verdadeiro despertar. Tudo se resume ao total desprendimento.

Entretanto, é muito doloroso sentir faltar o chão e não ter onde se agarrar. E como o lema do Instituto Naropa: “O amor à verdade nos deixa expostos”. Podemos ter alguma visão romântica do que isso possa significar, mas sofremos quando somos aprisionados pela verdade. Olhamos no espelho do banheiro e lá estamos nós, com nossas espinhas, nosso rosto envelhecido, nossa falta de bondade, nossa agressão e timidez — está tudo ali.

É nesse ponto que surge a ternura, quando tudo balança e nada funciona, é possível perceber que estamos à beira de algo. Esse é um lugar muito vulnerável e delicado, e essa delicadeza nos apresenta duas possibilidades. Podemos nos fechar e sentir ressentidos, ou tocar essa qualidade pulsante. Há, com certeza, uma qualidade delicada e pulsante quando experimentamos não ter nenhuma base.

“Exatamente ali — precisamente no momento em que ocorre a experiência de faltar o chão — encontram-se as sementes que nos levarão a cuidar daqueles que precisam de nós e a descobrir nossa própria bondade. […] Há, com certeza, uma qualidade delicada e vibrante quando experimentamos não ter nenhuma base.” —Pema Chödrön (arte: Lissyelle Laricchia)

Essa experiência é uma espécie de teste, o tipo de teste de que o guerreiro espiritual necessita para despertar seu coração. Às vezes, nós nos encontramos nesse ponto devido à doença ou à morte. Experimentamos um sentimento de perda — perda daqueles que amamos, perda de nossa juventude, de nossa vida.

Tenho um amigo que está morrendo, com AIDS. Estávamos conversando, antes de eu sair para uma viagem, e ele me disse: “Não queria isso, detestava essa situação e estava apavorado. No entanto, esta doença acabou se tomando meu maior presente. Agora, cada momento é valioso. Todas as pessoas com quem convivo são muito preciosas. Toda a minha vida significa muito para mim.” Algo realmente havia mudado e ele se sentia preparado para a morte. O que tinha causado horror e medo havia se transformado em dádiva.

Quando tudo se desintegra, somos submetidos a uma espécie de teste, e também a um certo processo de cura. Achamos que o sentido está em passar no teste e superar o problema, mas a verdade é que as situações não têm uma solução definitiva. Elas se compõem e desmoronam. E mais uma vez se compõem e desmoronam. É simplesmente assim que funciona. O processo de cura ocorre ao deixarmos existir espaço para que tudo isso aconteça: espaço para o luto, para o alívio, para a angústia e a alegria.

Pensamos que algo vai nos trazer prazer mas, na verdade, não sabemos exatamente o que vai acontecer. Achamos que algo vai nos trazer infelicidade, mas também não sabemos. Acima de tudo, o mais importante é deixar espaço para o não saber. Tentamos fazer aquilo que achamos que vai nos trazer alívio, mas é impossível ter certeza. Nunca sabemos se vamos nos sair muito bem ou se vamos falhar redondamente. Quando sofremos uma grande decepção, não sabemos se chegamos ao fim da história. Esse pode ser, simplesmente, o início de uma grande aventura.

Li, em algum lugar, sobre uma família que tinha apenas um filho. Eram muito pobres e esse filho era extremamente precioso. O que mais importava é que ele lhes trouxesse algum apoio financeiro e prestígio. Um dia, o rapaz caiu de um cavalo e ficou aleijado. Parecia que a vida tinha acabado. Duas semanas depois, as tropas do exército chegaram à pequena cidade e todos os homens fortes e saudáveis foram convocados para a guerra. Aquele jovem teve permissão para ficar e cuidar da família.

Assim é a vida. Não sabemos de nada. Dizemos que algo é bom, dizemos que algo é ruim mas, na verdade, simplesmente não sabemos.

Quando tudo se desfaz e nos encontramos à beira sabe-se lá de quê, o desafio que se apresenta a cada um de nós é o de permanecer nesse limiar, sem buscar alguma ação concreta. O caminho espiritual não tem nada a ver com o paraíso, com chegar finalmente ao céu. Na verdade, esse modo de encarar a vida é que nos mantém infelizes. Pensar que podemos encontrar algum prazer duradouro e evitar a dor é o que o budismo chama de samsara, o ciclo inútil que gira e gira, infinitamente, e nos causa tanto sofrimento. A primeira nobre verdade que o Buda nos apresenta chama nossa atenção para o fato de o sofrimento ser inevitável para nós, seres humanos, enquanto acreditarmos que as coisas permanecem — que não se desintegram e que podemos contar com elas para satisfazer nossa ânsia de segurança. Sob esse ponto de vista, o único momento em que realmente sabemos o que está acontecendo é quando nos puxam o tapete e não encontramos nenhum apoio. Podemos utilizar situações desse tipo para despertar ou escolher dormir. Exatamente ali — precisamente no momento em que ocorre a experiência de faltar o chão — encontram-se as sementes que nos levarão a cuidar daqueles que precisam de nós e a descobrir nossa própria bondade.

Lembro-me muito claramente do dia, no início da primavera, em que perdi tudo o que considerava real. Embora isso tenha acontecido antes que eu tivesse qualquer contato com os ensinamentos budistas, representou o que alguns poderiam chamar de uma autêntica experiência espiritual. Ela ocorreu quando meu marido me contou que estava tendo um caso. Vivíamos na região norte do Novo México. Eu estava parada em frente à nossa casa de adobe, tomando uma xícara de chá. Ouvi quando o carro chegou e o barulho da porta batendo. Então, ele é caminhou até a casa e, sem qualquer aviso, disse que estava tendo um caso e que queria o divórcio.

Lembro do céu e de como ele era imenso. Lembro do murmurar do rio e do vapor que saía da minha xícara de chá. O tempo não existia, não havia nenhum pensamento, não havia nada — apenas a luz e uma quietude profunda e ilimitada. Então, eu me recompus, peguei uma pedra e atirei nele.

Quando me perguntam como acabei me envolvendo com o budismo, sempre respondo que foi porque estava com muita raiva do meu marido. A verdade é que ele salvou minha vida. Quando esse casamento desmoronou, tentei arduamente — muito, muito arduamente — encontrar algum tipo de consolo, alguma segurança, algum lugar que me fosse familiar e onde pudesse repousar. Para minha sorte, nunca consegui. instintivamente, sabia que a destruição de meu velho eu, dependente e apegado, era o único caminho a seguir. Foi nessa época que pendurei o tal cartaz na parede.

A vida é uma boa professora e uma boa amiga. Se pudéssemos perceber, veríamos que tudo está sempre em transição. No fim, nada é como sonhamos. Esse estado descentralizado e indefinido representa a situação ideal. Nesse ponto, não estamos presos a nada e podemos abrir nosso coração e mente além de qualquer limite. Essa é uma situação sem agressividade, muito frágil e aberta.

Ficar nesse desequilíbrio — com o coração partido, o estômago apertado, o sentimento de desesperança e o desejo de vingança — é o caminho do verdadeiro despertar. Ficar na incerteza, pegar o jeito de relaxar no meio do caos, aprender a não entrar em pânico — esse é o caminho espiritual. Desenvolver a habilidade de perceber-se, de perceber-se com suavidade e compaixão — esse é o caminho do guerreiro. Gostando ou não, temos de nos flagrar um milhão de vezes e mais uma, quando congelamos em ressentimento, amargura e justificada indignação — quando congelamos de qualquer modo, até mesmo em sentimentos de alívio e inspiração.

Todos os dias poderíamos pensar na agressividade que existe no mundo — em Nova York, Los Angeles, Halifax, Taiwan, Beirute, Kuwait, Somália, Iraque — em todo lugar. No mundo todo, há sempre alguém lutando violentamente contra um inimigo e a dor está em franca escalada. Todos os dias poderíamos refletir sobre isso e pensar: “Vou acrescentar mais agressão ao mundo?’. Todos os dias, quando as situações se tornam tensas, poderíamos apenas nos perguntar: “Vou cultivar a paz ou me aliar à guerra?”


O estudo do livro Quando tudo se desfaz: orientação para tempos difíceis durou 13 semanas, foi todo gravado e está disponível em vídeos e áudios para quem entrar agora na comunidade. Há participantes fazendo esse estudo até hoje! Também exploramos as práticas da compaixão no estudo de Um coração sem medo, de Thupten Jinpa, e recentemente no ciclo “Mãos e olhos” e no estudo de À beira do abismo, ambos com a participação de Roshi Joan Halifax com três encontros de ensinamentos, também disponíveis.

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