Treinando a mente de cada momento

por Fábio Rodrigues

No ano de 1235, ao voltar da China para construir um monastério no Japão, o grande mestre Zen Eihei Dogen escreveu em sua carta de captação de fundos:

“Nos envolveremos de forma completa em cada atividade a fim de cultivar condições férteis para transformar as dez direções.”

Qual o sentido dessa proposta? Como é possível que varrer, cozinhar, sentar, caminhar e as atividades nada especiais do cotidiano possam transformar o mundo inteiro? Podemos pensar que nem sempre fazemos coisas importantes, ou que as coisas que são relevantes para uma pessoa, podem não ser para outra, o que é significativo em um momento, não é em outro. Para que, afinal, vale e pena dedicar atenção, tempo e vida?​ Destrinchar os infinitos meandros teóricos e práticos desse problema é responsabilidade inevitável de cada um, em cada caso. Nenhuma atividade escapa, por grande ou pequena que pareça ser. Justamente por isso, cada ação conta.

O sentido de fazer as coisas depende de como nos engajamos com elas. Em vez de olhar para as práticas como tarefas a mais na mesma lista das tantas coisas a fazer, podemos vê-las como modos de descobrir e se familiarizar com o tipo de mente ou coração com o qual desejamos encontrar cada situação na vida. Não importa se temos clareza disso ou não, se nossas ações são corriqueiras ou heróicas. A cada momento, em cada atividade, em cada encontro, o nosso coração já porta motivações, compreensões e sonhos de todo tipo.

“Shih-Te, Woman Sweeping”, pintura de Mayumi Oda

Posso varrer o chão com indiferença, preguiça, orgulho, raiva, medo, carência, competitividade, cada tipo possível de enviesamento. E também posso varrer reconhecendo as bolhas de sentido que se oferecem ali mesmo, modulando de certa forma a respiração, as emoções, o ânimo, as tensões ao longo do corpo, os pensamentos, as ideias, vontades, a ação seguinte, o assunto com o qual ocuparei a conversa e a vida da próxima pessoa que encontrarei.

Posso ainda, de fato, dedicar o varrer como uma oferenda para o benefício de todos os seres de todos os lugares e tempos. Sabendo ou não, cultivo e perpetuo as qualidades internas e as visões que estiverem presentes enquanto varrer. De perder tempo até causar dano ou benefício, de ato político até caminho de liberação, varrer pode ter qualquer valor. Assim como sentar em meditação e qualquer outra atividade.

“A presença mental e um coração respeitoso em cada momento são igualmente aplicados na meditação e em outras atividades diárias, incluindo trabalho, interação com os outros e limpeza do corpo. Praticar e viver dessa maneira nos ajuda a claramente ver, entender e valorizar o que está diante de nós como nada menos que a totalidade da vida mesma.”

—Kazuaki Tanahashi

Assim, praticar é algo que já estamos fazendo. Treinamos a exata posição de mente de cada momento. Precisamos apenas descobrir quais posições são essas, quais qualidades, tendências e inteligências estamos cultivando, e então escolher pelas melhores. No fim das contas, as ações benéficas são aquelas que nos ajudam a reconhecer o infinito valor da vida, que nos ajudam a aumentar a compaixão e diminuir os obstáculos, o fechamento, o endurecimento. Ao encontrar qualquer situação ou ser, a qualquer momento, podemos olhar para o sonho, a vontade, o sentimento, a aspiração que surge em nosso coração e então perguntar: “Eu desejo que isso cresça em minha vida e no mundo? Eu desejo isso para mim e para os outros? É assim que desejo ser?”.

E ainda que não consigamos manifestar as qualidades que admiramos, sempre é possível lembrar delas e aspirar por elas, para nós e para os outros. Ainda que sejamos incapazes de ter compaixão natural em certas situações, sempre é possível reconhecer isso, e sem julgar ou endurecer, lembrar da compaixão e desejar que ela possa surgir cada vez mais em nosso próprio coração e no mundo. Paradoxalmente, exatamente isso já é compaixão.

A transformação de cada pessoa e do mundo depende de que essas visões sejam incorporadas e sedimentadas nas mil atividades banais do cotidiano. Para que a paz, por exemplo, deixe de ser uma questão, ela tem de se tornar corriqueira. É no chão do cotidiano, pelo meio das atividades mais comuns que o mundo é salvo, sustentado e transformado. Sanctum sanctorum — o chão cotidiano é o templo, o topo da montanha, o lugar mais sagrado.