Ailton Krenak sobre como adiar o fim do mundo

por Gustavo Gitti

Não deixe de ver até o fim!

“É sobre viver a experiência, tanto a experiência do desastre, quanto a experiência do silêncio. Porque às vezes nós queremos viver a experiência do silêncio, mas nós não queremos viver a experiência do desastre. ‘Ah, não, mas aí eu vou ter que fugir, correr e escapar, como é que eu vou experimentar isso? Isso é muito doloroso!’ Por isso que eu disse a vocês que os Krenak decidiram que nós estamos dentro do desastre. Não precisa ninguém ir lá e tirar a gente. Nós vamos atravessar o deserto. Tem que atravessar o deserto, uai! Toda vez que você encontrar um deserto você vai sair correndo? Quando aparecer um deserto, atravessa ele!

—Ailton Krenak

Durante o intensivo SIM 2020, cerca de 200 pessoas da comunidade online olugar.org participaram ao vivo de uma conversa com Ailton Krenak. Foi uma fala tão espontânea e tão extraordinária que resolvemos publicar abertamente para que você possa fazer ressoar mais e mais, conversando e sonhando a partir dela com as pessoas ao seu redor.

Em poucos dias, os participantes transcreveram a fala de Ailton Krenak e a artista Julia Bernardes, de Belo Horizonte, se animou em ilustrá-la. Depois de um cuidadoso trabalho de edição, revisão e formatação, publicamos um livreto para download, disponível para os participantes da nossa comunidade online.

Em todo início de ano nos reunimos para o intensivo SIM, em que sonhamos juntos o mundo que queremos. Já recebemos nestes encontros online Reinaldo Nascimento, Ana Claudia Quintana Arantes, Thiago Ávila, Geni Nuñez, Lama Padma Samten, Elizabeth Mattis-Namgyel, Tenzin Wangyal Rinpoche, Roshi Joan Halifax e muitos mais seres admiráveis! Todos os encontros seguem gravados e disponíveis para quem quiser entrar agora. Vai ser uma alegria te receber!

“A vida não é para ser útil. Isso é uma besteira. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade para ela. A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que ela é uma dança cósmica e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária, a uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço… Tudo isso, gente, é uma historinha tão ridícula! A vida é mais do que tudo isso. […] Nós temos de ter coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar sobrevivência.”

—Ailton Krenak

Um trecho de sua fala

“O nosso xamã yanomami, o Davi Kopenawa, ele faz uma crítica muito clara a essa tendência da civilização ocidental, a essa fúria da civilização ocidental com relação a uma nova mercadoria a cada instante. Há uma nova mercadoria a cada hora, a cada momento, tem que ter uma nova coisa pra nos entreter. Quem sabe esse alerta do Davi Yanomami esteja relacionado também com a experiência que os povos que vivem na floresta, que vivem na natureza, estão sentindo na pele, vendo as suas florestas desaparecer, sentindo que os outros seres que vivem na floresta, desde a abelhinha até o colibri, as formigas, a florescência; o ciclo das árvores mudando.

Quando ele sai para caçar ele tem que caçar muito mais longe, ele tem que andar dias para caçar. Uma espécie que aparecia ao redor da aldeia e que convivia e habitava aquele lugar com eles, compartilhava aquele lugar com eles, agora sumiu. Aí ele olha e fala: “Pera aí, o mundo ao meu redor tá sumindo!”. Parece que quem vive na cidade não experimenta isso com muita frequência, porque a cidade, ela tão artificial que tudo parece que tem uma existência automática. Você estende a mão e tem um pão, tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, uma drogaria, um hospital.. e, na floresta não tem essa substituição da vida, ela flui e você, no fluxo da vida, você sente mais a sua, digamos, a sua pressão.

Experimentar a pressão da vida, talvez fosse a experiência pra substituir a ideia de natureza. Isso que a cultura chama de natureza deveria ser uma fricção do nosso corpo com a vida, em que a gente soubesse de onde vem o que eu como,  o que vem no ar que eu respiro, o que acontece quando eu inspiro, expiro, pra onde vai, o que acontece com isso. Essa consciência de estar vivo deveria nos atravessar de uma maneira em que a vida não fosse alguma coisa fora de nós, em que você sentisse de verdade que, assim, a vida está em mim, não fora. Experimentar a vida na gente, atravessar na gente. Para além da ideia de “eu sou a natureza”, é sentir que essa experiência nos atravessa de uma maneira tão maravilhosa que, o rio, a floresta, o vento, as nuvens, tudo que a gente pode perceber como externalidade, elas estão na gente, é nosso espelho na vida… é nosso espelho na vida. E eu, é… tenho uma alegria muito grande de experimentar isso e eu fico as vezes tentando comunicar essa experiência para outras pessoas, mas eu também respeito o fato de que cada pessoa têm a sua passagem aqui no mundo informada por diferentes..é… outros mundos.

Como o Ocidente, com essa coisa da lógica do Ocidente, a razão do Ocidente, ele formatou o mundo, como se fosse já uma mercadoria e replica isso de uma maneira tão naturalizada que, um menino que cresce no ocidente, ele já cresce dentro dessa experiência como se ela fosse totalizante. é uma experiência total. A informação que ele vai, esse menino ou essa menina, vai receber pra se constituir como pessoa e atuar no meio da sociedade dele, já é um roteiro predefinido. Ele vai ser um engenheiro, um arquiteto, um médico, um sujeito habilitado para governar o mundo, pra fazer guerra. Já está tudo, digamos, configurado. Esse mundo pronto e triste, eu não tenho nenhum interesse nele, por mim ele já podia ter acabado a muito tempo. Eu não tenho interesse em adiar ele.

A primeira vez que eu disse que eu achava que tinha alguns mundo que já deveria ter acabado, eu assustei as pessoas. Eles me disseram: “ Nossa, que coisa horrível Krenak, você dizer que o mundo já podia ter acabado!” Aí, eu disse para esses meus amigos que, na verdade, eram biólogos, cientistas, antropólogos, pensadores de diferentes campos que estavam num seminário chamado “Os Mil nomes de Gaia”e, o Eduardo Viveiros de castro tinha organizado essa série de conferências, e eles me convidaram para falar depois que muito ciência já tinha rolado debaixo da ponte. Eu fui falar quase no último dia e, quando eu disse pra eles “Eu ouvi vocês fazendo um diagnóstico desse mundo que nós estamos vivendo que é apavorante! Então, porque é que vocês estão interessados em que ele continue existindo? Se o mundo está dessa maneira que vocês estão constatando, porque que vocês não apertam o botão?”. Eles acharam que era uma declaração minha que desprezava todo o esforço que vinham fazendo para adiar esse mundo. Esse mundo total. E eu disse pra eles que se era verdadeiro o diagnóstico que nós tínhamos desse mundo, não tinha problema nenhum que ele acabasse logo. Podia ser hoje mesmo. […]

Outro dia eu fiz um comentário público dizendo que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Alguns me disseram que estavam irritados com isso, que eu estava fazendo uma afirmação que desorganizava uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas para a  sustentabilidade, para um lugar de equilíbrio no gasto excessivo de tudo. De água, de madeira, de recursos que o mundo têm limitados e que nós usamos de uma maneira ilimitada. Aí eu disse: “Então, eu concordo com você que nós precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando um mito da sustentabilidade que nós vamos, de verdade,  trabalhar pra isso. Inventando um mito da sustentabilidade nós vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando a gente inventou, por exemplo, as religiões.” 

Tem gente que fica muito confortável se contorcendo, fazendo yoga, ou ralando no caminho de Santiago, ou rolando no Himalaia, achando que com isso ele tá se elevando e, na verdade,o que ele tá fazendo é só uma fricção  com a paisagem. Isso não vai fazer ninguém sair do ponto morto. Então é uma provocação acerca do egoísmo. Eu não vou me salvar sozinho de nada! Eu não tenho fuga. Nós estamos todos enrascados. E eu acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que se nós economizarmos água ou se a gente só comer orgânico, ou  andar de bicicleta, nós vamos diminuir a velocidade com que nós estamos comendo o mundo. 

Ideias para adiar o fim do mundo é mais uma provocação do que um manual. Ele não é um manual. Se você estiver despencando de algum lugar, não abra esse livrinho. Ele não é um manual, ele não é um kit salva vidas, porque ele vai cair junto com você do mesmo jeito. Aquela referência aos paraquedas coloridos, ela é uma provocação para que a gente pudesse arregimentar as nossas capacidades, aquelas experiências que a gente conseguiu clarear para nós, e conduzir aquelas experiências no sentido de inventar os paraquedas coloridos. Eles ainda não estão disponíveis no mercado. A gente vai ter que inventar.

A poesia que inspira essa ideia, ela é também uma crítica à ideia de que a tecnologia vai dá conta de resolver nossos problemas aqui no mundo. Tem muita gente que acredita que a tecnologia dá conta de tudo. Se a gente tiver uma tragédia monumental no planeta nós vamos mobilizar nossas pesquisas, nossa ciência, e no final das contas a gente resolve isso. Se a gente predar esse planeta a ponto de não poder continuar vivendo aqui, a tecnologia também vai resolver isso, porque nós vamos botar uma plataforma em algum lugar no espaço e vamos reproduzir a vida lá, porque a tecnologia faz isso a tecnologia é capaz disso.

O meu desvio que eu sugiro é que, ao invés da gente ir por meio desse caminho, que pode nos levar a uma plataforma no cosmos, era de inventar os tais dos paraquedas coloridos como uma possibilidade para além desse fim de mundo que seria consumir esse e os outros possíveis. 

O poeta Carlos Drummond de Andrade tem um poema que têm o título de “O homem, as viagens”, esse poema eu acho que é um poema da década de 60, quando a corrida espacial estava totalmente.. em a todo vapor. Que a ideia era assim, que a cada semestre, a cada ano, uma nave para o espaço. E, nós fomos, alguns de nós que ta aqui com 40, 50, 60, 70 anos, por aí, foi embalado com esse sonho de Flash Gordon, de que a gente poderia comer essa terra aqui, porque na verdade a gente já estava até indo para uma outra. A turma que ta por aqui agora com 30, 20 e poucos anos, não viveu essa experiência direta, mas eles foram profundamente influenciados por essa ideia de que nós estamos aqui decolando para um outro lugar. Talvez seja por causa disso que as escolas de engenharia. farmácia e arquitetura continue reproduzindo aquele mundo chapado, de cidades verticais, com milhares de pessoas empilhadas uns em cima do outro.  Porque esse caráter temporário da nossa acampagem aqui na terra, supõe que nós vamos decolar daqui para um outro lugar.  

Essa experiência de consumir o mundo porque têm outros possíveis é um autoengano. Não tem outros possíveis. A nossa experiência como seres que tiveram origem no planeta terra, essa experiência que nos constitui de 70% de água e outros materiais que constituem nosso corpo, só dá pra fazer aqui na terra. Em Marte a gente já tentou, foi lá. Pegou a terra, botou água, soprou, mas não saiu gente. E.. a experiência original daqui, um dos mitos de origem nosso,  diz que pegaram água, barro misturaram e tal, sopraram, e deu em nós, né? Em algumas tradições diz isso. E outras diz algumas coisas diferentes, mas todas precisam de material que tem aqui, nesse maravilhoso planeta azul, que a gente chama de Terra.

Então, quando alguém diz “eu sou terra”, “eu sou água”, essa pessoa não está pirando. “Eu sou água, eu sou terra, ar”, é verdade, é uma declaração do que a gente é. Se pegar essas coisinhas assim, cortar, botar ali e analisar, é isso mesmo. Eu não acreditaria se alguém chegasse pra mim e falasse assim “eu sou Marte, eu sou Júpiter”, porque aí eu ia achar que ele tava brincando de ser aqueles.. Power Rangers! Aqueles.. “Fogo!”, “Água!”, “Pedra!” e tal, e  nós somos essa experiência maravilhosa de verbalizar a vida na terra. Nós verbalizamos a vida na Terra! Como uma lagarta, como uma borboleta.. Como uma formiga, como um desses que você abre a palmeira e puxa e tem um monte de corozinhos dentro, parecendo uns vermezinhos. Somos nós. Nós somos isso. Quando a gente quer se descolar disso tudo e ficar com essa ficção da ciência e da tecnologia, é que nós nos envenenamos. As escolas de engenharia tinham que pensar muito na responsabilidade que elas têm de todo ano despachar pra rua milhares de perigosos engenheiros, porque os conteúdos que esses engenheiros vão pegar na universidade resulta nessas cidades verticais, nesse artificialismo todo que sustenta a nossa vida urbana. E ainda chamam isso de sustentável. Então, é uma mentira embalada. Bem embaladinha.

A ideia da certificação, a ideia dos testes que são feitos com os materiais, com as mercadorias, com as coisas que nós consumimos, que vai desde a embalagem até o conteúdo… Tudo isso deveria ser posto em questão antes da gente dizer que existe qualquer coisa de sustentável no nosso mundo de mercadoria, consumo e alienação.

Porque, enquanto nós temos as bases materiais da nossa vida, no cotidiano, no fluxo, funcionando, a gente não pensa de onde vem. Só quando tem um desastre, quando tem um terremoto e as pessoas ficam desplugadas dessas fontes de suprimento, é que começa a sofrer, pensar,  e falar “Nossa, o que nós estamos fazendo?” Quando tem os grandes desastres, as pessoas que sobrevivem à eles costumam pensar em mudar de vida. Eles costumam pensar em mudar de vida porque eles tiveram uma breve experiência do que que é estar vivo…

Porque, como a maioria do tempo eles são alienados de que tão vivos, não sabe que respira, não têm consciência que respira.. Na verdade eles acham que quem respira é uma outra pessoa. Eles só tão vivendo. Tem um clone deles que respira para eles viverem (risos)… não têm consciência de respirar. Inspirar, respirar. Não têm consciência do que põe na boca pra comer, é igual combustível, ele para num posto de fala “ Tem diesel?” A não, não tem diesel não… Então põe álcool” “Tem gasolina X, B, Y”. Então, essa automatização… vai comendo qualquer coisa, vai bebendo qualquer coisa, vai andando, vai morrendo… Essa alienação, ela é a prova de como nós estamos no mundo de uma maneira irresponsável. Se nós estamos no mundo de uma maneira irresponsável, as consequências disso são essas experiências sociais caóticas.”

Foto: Neto Gonçalves (Companhia das Letras)

Sobre Ailton Krenak

Ailton Krenak é escritor, uma das maiores lideranças do movimento indígena e um grande pensador brasileiro. Nasceu na região do Vale do Rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, foi decisivo para o reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição Federal. É professor doutor Honoris Causa pela UFJF. Além de O lugar onde a Terra descansa (2000), seu livro Ideias para adiar o fim do mundo foi publicado em 2019.

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