Como dialogar com visões de mundo que nos parecem destrutivas — Lama Padma Samten

por Geovana Colzani

Em nosso primeiro encontro do ciclo Comunidade, estávamos em mais de 700 pessoas ao vivo com o Lama Padma Samten, que ensinou sobre a sabedoria que gera redes compassivas. Esta é uma das perguntas feita por uma participante do lugar e transcrita também por participantes da comunidade. A fala completa você encontra no canal do YouTube do lugar.

Pergunta: Lama, sobre essa parte de aprender a lidar com as diferenças para além do sectarismo, como na prática receber e dialogar com visões de mundo que nos parecem destrutivas e ameaçadoras, sem nos perdermos na raiva e enfrentamento conflituoso e, ao mesmo tempo, na omissão e distanciamento com pessoas das redes às quais fazemos parte?

Resposta: Se pretendemos atravessar o sectarismo, precisamos ouvir até o fim as pessoas agressivas sem contestar. Precisamos integrá-las. Eu daria uma sugestão. De modo geral as pessoas agressivas estão com algum nível de ansiedade. Elas provavelmente estão protegendo coisas que elas consideram essenciais. Nós não precisamos nem concordar com elas. Nós podemos combatê-las, mas damos nascimento para elas, entendemos elas no mundo delas. Podemos dizer claramente para elas que vamos combater a posição delas até o fim, mas não somos contra elas. Nós somos contra essa posição. Essa posição não pode ser mantida. Vamos lutar até o fim, vamos fazer esforços, vamos usar a criatividade para ultrapassar aquilo, mas não nos colocamos contra o outro. Podemos dizer que elas vão ter muitos problemas fazendo isso, com certeza. Essa não é uma boa posição. Muito melhor é outra posição. Mas sendo esta uma posição que vai causar danos em várias direções, vai causar muitos problemas, eu não posso dizer que está tudo bem. Não está tudo bem e eu vou me colocar contra, mas não é contra você.

Eu pessoalmente tive muitas vezes esse tipo de experiência desde os anos setenta, incluindo as discussões sobre o programa nuclear, que eram discussões graves. Uma das questões que eu resolvi assim, não posso dizer que é uma chave que vai funcionar sempre, mas eu tive muitos bons resultados que podem não acontecer. Mas uma das coisas que de fato eu sempre lembro e me alegro foi quando a prefeitura de Três Coroas resolveu colocar o depósito de lixo na propriedade contígua ao Chagdud Gonpa em Três Coroas. O projeto já tinha passado pelos órgãos ambientais, tinha urgência, estava tudo financiado e já estava começando. Eu fui conversar com o prefeito que por alguma razão eu tinha uma conexão cármica com ele de colaboração, porque são cidades pequenas. Nós sempre pedimos favores e prestamos favores, conversamos, damos opiniões. Então eu tinha essa facilidade de conversar com ele. Eu disse exatamente isso para ele: “nós somos amigos, nos damos bem, mas eu vou me posicionar totalmente contra isso e o senhor vai ver uma pilha de cartas de várias partes do país e do mundo pedindo que o senhor não coloque o lixo ali, porque é muito relevante a instalação do Chagdud Gonpa onde está e nós temos que proteger. O senhor vai receber cartas de todo o lado e o senhor vai desistir”. Se o senhor vai ter que desistir é melhor nem começar (risos). Ele entendeu, concordou e perguntou o que deveria fazer. Respondi para arrumar outra área e o ajudei a encontrar uma outra área. No fim ele conseguiu uma outra área mesmo.

Essa questão retornou alguns anos depois quando aquela mesma área que a prefeitura tinha adquirido ficou sem destino. Aí eles resolveram ceder para o grupo de tradições gaúchas e instalar um centro de eventos onde ia ter laço, música, dança, do lado da área de retiro. De novo, me chamaram e eu fui na prefeitura. Me sentei com eles, brincando bastante e sugeri: “façam isso junto da canoagem, mas ali não. Ali é um lugar para uma área de proteção ambiental ou hospital, uma coisa assim, mas não para uma coisa barulhenta. Se vocês colocarem alguma coisa barulhenta ali e depois vão ter que tirar é melhor nem colocar”. Eles entenderam e não colocaram de fato. Eu estou aguardando a próxima, mas não veio (risos).

Essencialmente é isso. Nós ajudamos o outro a raciocinar, mas nos colocamos em uma posição contra. Com respeito à energia nuclear foi assim. “Não dá. Nós estamos em campos opostos, mas eu entendo vocês e como vocês estão pensando. Isso faz sentido, mas isso não quer dizer que vamos concordar. Nós estamos operando em campos opostos e, com certeza, vocês não vão ter êxito”. Tinha uma série de razões pelas quais eles não poderiam ter êxito. Essencialmente a energia nuclear, além de ser perigosa, tem um custo incerto. É muito alto o custo que nós já sabemos, mas tem um custo adicional incerto. Por exemplo, quanto custou a usina de Fukushima se eles não produzem e tem que cuidar daquela radiação que eles geraram? Qual é o custo daquilo? Tem um custo imponderável. Então, tudo que está associado à energia nuclear tem esse problema. Como vamos embutir no custo, cuidar de um material radioativo? Se não tiver nenhum acidente já é um problema. Essa era a conversa. “Nós somos contra e eu entendo como vocês estão pensando, mas essa não é uma boa ideia”. No final, a própria Alemanha que vendia a tecnologia para nós, está suspendendo as centrais. Nesse ano eles devem suspender as últimas. Agora, como o petróleo foi cortado, não estão comprando petróleo russo, então talvez eles mantenham por mais um tempo. É assim e os acidentes aconteceram.

Então, é necessário que tenhamos essa firmeza, mas não uma hostilidade. Se não olharmos no olho do outro com apreciação, se não incluirmos o outro, o outro se torna um inimigo. Aí não tem diálogo. Mas se entendemos o outro e nos entendemos, podemos ter posições diferentes sem nos tornarmos inimigos.



Lama Padma Samten (Alfredo Aveline) foi professor de física quântica de 1969 a 1994 na UFRGS. Em 1986 fundou o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), com sede em Viamão (RS) e centros de prática e retiros em todo o país. Em 1993, foi aceito como discípulo por Chagdud Tulku Rinpoche e em 1996 foi ordenado lama. 

Desde então, Lama Padma Samten viaja pelo Brasil para oferecer palestras, retiros, estudos e práticas que integram os ensinamentos budistas e o treinamento da mente à vida cotidiana e às diversas áreas do saber, como educação, psicologia, economia, administração, ecologia e saúde.

Participou conosco do SIM 2021, e dessa vez ensinou sobre a sabedoria das redes compassivas, que manifesta há décadas ao orientar as escolas Vila Verde e Caminho do Meio, comunidades de prática, centros urbanos e aldeias por todo o Brasil — nas quais seus alunos e alunas exploram práticas contemplativas e meios hábeis que podem mudar o mundo, como agrofloresta, bioconstrução, educação para a felicidade, preservação e reflorestamento da mata antiga, valorização das tradições dos povos originários e outras abordagens orgânicas de arquitetura, geração de energia, tratamento biológico dos efluentes e alimentação equilibrada.