O que você realmente deseja (por Thich Nhat Hanh)

por Fábio Rodrigues

Este é um trecho do novo livro de Thich Nhat Hanh, Zen and the art of saving the planet. Tradução de Fábio Rodrigues.

Thiền Sư Thích Nhất Hạnh

“Qualquer bodisatva, qualquer grande ser, tem sempre em si uma tremenda fonte de energia. Se você ainda não tem uma aspiração, você precisa encontrá-la. Devemos nos sentar com nosso parceiro, com nossos amigos, e perguntar sobre os sonhos mais profundos um do outro. E se você compartilhar o mesmo tipo de aspiração, seu relacionamento ficará mais forte. Estamos aqui, vivos, e todos nós queremos fazer algo com nossa vida. Queremos que nossa vida seja proveitosa e significativa.

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No budismo, falamos de quatro tipos de nutrientes: alimentos comestíveis (o que comemos e bebemos), impressões sensoriais (tudo o que consumimos através de nossos sentidos em termos de imagens, sons, música, filmes, websites etc), volição (o que consumimos em termos de nossa intenção mais profunda), e consciência (o que consumimos na energia coletiva ao nosso redor). Todas estas fontes de nutrientes podem ser saudáveis ou tóxicas.

O primeiro dos Quatro Nutrientes a ser contemplado é a “volição”. O que queremos fazer com nossa vida? Temos que nos sentar e investigar profundamente para descobrir. Seu desejo mais profundo é correr atrás de fama, de poder, de sucesso, de riqueza e do estímulo sensorial, ou é algo mais? Para um terrorista, seu desejo mais profundo é punir e matar. Para um ecologista, seu desejo mais profundo é proteger o meio ambiente.

Todos nós temos desejos, e nossos desejos podem ser saudáveis ou insalubres. Podem nos fazer sofrer ou podem nos fazer felizes. O nosso desejo mais profundo é saudável ou não? Se nosso desejo mais profundo é sofrer menos e ser mais feliz, se nosso desejo mais profundo é voltar a nós mesmos, criar alegria e felicidade, e nos nutrir e ajudar os outros a fazer o mesmo, se nosso desejo mais profundo é aprender a acolher e transformar nosso sofrimento, para que possamos sofrer menos e ajudar os outros a fazer o mesmo — então isso é bom. Esta é uma boa aspiração, isto é bodicita, o melhor tipo de volição.

Nós sabemos que há sofrimento em nós mesmos e no mundo. Queremos fazer alguma coisa, ser alguma coisa, para ajudar a reduzir a quantidade de sofrimento que existe. Mas podemos nos sentir desamparados porque a quantidade de sofrimento é muito grande. E sozinhos parece que não podemos fazer muita coisa, nem conseguimos suportar viver, mesmo que ainda sejamos muito jovens.

Quando o Buda era jovem, ele tinha a mesma sensação. Ele viu o sofrimento, e viu que, mesmo sendo um rei, não há muito que se possa fazer para aliviar o sofrimento. E assim, ele escolheu não se tornar rei, deu as costas para a corte real, e tentou encontrar outro caminho. E o que o motivou a se tornar um monge, a praticar, foi o desejo de ajudar as pessoas a sofrer menos. Uma vez que possamos transformar o sofrimento em nós mesmos, seremos capazes de ajudar a transformar o sofrimento no mundo. Isso é muito simples, muito claro. E foi isso o que o Buda fez.

Dr. Martin Luther King Jr. e Mestre Zen Thich Nhat Hanh

Nós praticamos presença mental — podemos até nos tornar praticantes monásticos — não para evitar o sofrimento nem para evitar a sociedade, mas para obter a força de que precisamos para enfrentar e ajudar. E aprendemos que, embora sozinhos não possamos fazer muito, com uma comunidade nós podemos fazer alguma coisa. É por isso que a primeira coisa que Buda fez após a iluminação foi procurar os elementos para construir uma sanga, e ele foi um excelente construtor de sangas. Nas últimas décadas, aprendi também a construir uma sanga. Quando conheci Martin Luther King Jr., ele usou as palavras “amada comunidade” para descrever a sanga, nossa comunidade espiritual.

Quando eu era um jovem monge, o sofrimento no Vietnã era avassalador. Milhões de pessoas morreram. E como é possível ajudar? Você está esmagado pelo sofrimento, e mesmo assim você quer fazer algo para ajudar a acabar com a guerra. Meus amigos e colegas — incluindo a irmã Chan Khong, que ainda era uma jovem estudante na época — fizeram tudo o que puderam para ajudar a aliviar o sofrimento daqueles que eram pobres e oprimidos. Mas não foi suficiente; a guerra continuou a destruir muito. E assim, eles começaram a se engajar em atividades de paz, e a Irmã Chan Khong até mesmo foi presa. Eu também sofri como resultado de meus esforços para trazer a paz: quarenta anos de exílio porque ousei fazer algo para ajudar a pôr fim à guerra. Quarenta anos de exílio! Mas tínhamos que fazer algo; caso contrário, nunca poderíamos ter sobrevivido, nem física nem mentalmente. Ficamos insanos se não podemos fazer algo.

“Paz em mim, paz no mundo” — pintura caligráfica de Thich Nhat Hanh

Para todos nós hoje, é a mesma coisa. Nosso planeta está em perigo. Há tanta violência, tanto sofrimento acontecendo no mundo, você enlouquece. Você quer fazer alguma coisa, antes de tudo para apenas sobreviver, e depois para ajudar a reduzir o sofrimento. Você aspira fazer alguma coisa. Você deseja alguma coisa. E você precisa desse tipo de desejo para ter energia suficiente para se sustentar. Seu desejo mais profundo não é apenas ter dinheiro, reconhecimento social, influência ou sucesso. O que você realmente deseja é algo mais.

Talvez você queira mudar a direção da civilização. Talvez você queira ajudar as pessoas a cuidarem de si mesmas e de seu sofrimento para que elas possam curar e transformar, viver profundamente com alegria e felicidade, e ajudar a Terra a restaurar sua beleza. Isso é um bom desejo, uma boa fonte de alimento. Isso é bodicita, a mente do amor. E, se você é um político, um ativista ou um líder corporativo e tem esse tipo de boa intenção, boa volição, você pode reverter a direção que nossa civilização está tomando.

Há desejos que podem destruir você, seu corpo e sua mente. Mas há também desejos que podem lhe dar muita força: uma aspiração, um voto. E, como jovem, você precisa desse tipo de alimento. Claro, nós já temos nosso próprio sofrimento, mas assim que tivermos uma forte aspiração, estaremos prontos para fazer algo. Vendo o sofrimento no mundo, imediatamente nós sentimos que o sofrimento em nós não é a coisa mais importante, e imediatamente nós sofremos menos. E é por isso que esse tipo de nutriente, esse tipo de alimento é muito importante.

Thich Nhat Hanh, Roshi Joan Halifax (à esquerda) e sanga

E, quando você tem este tipo de desejo em você, seus olhos brilham mais e seu sorriso é mais bonito e seus passos se tornam mais firmes. E esse forte desejo é o tipo de nutrição, o tipo de alimento que você precisa. E, quando nos reunimos como uma comunidade com uma aspiração coletiva, nós temos a energia necessária para realizar o que nós queremos realizar. E nós tomamos refúgio em uma comunidade, não para nosso próprio bem, mas para o bem de todas e todos, porque sem comunidade nós não temos como ir longe.

Você sabe o que fazer. Você tem que dominar as técnicas de presença mental, concentração e visão clara, porque a geração jovem precisa de você. Seu tempo é para isso. Cada momento é uma oportunidade para nos treinarmos, para nos transformarmos, para nos prepararmos para servir o mundo. Não temos tempo a perder com coisas que não são realmente importantes. Nosso caminho é muito claro. Temos algo a fazer. E sabemos que, se pudermos fazer isso, podemos ajudar a reduzir o sofrimento do mundo. Embora eu esteja em idade avançada, tenho sido capaz de manter viva a minha aspiração. Eu ainda sou jovem de espírito e quero transmitir essa energia aos meus alunos. Não envelheçam, permaneçam jovens. Obtenham o tipo apropriado de alimento. E construam comunidade juntos.