Escrito na terra (Por Zenju Earthlyn Manuel)
Este é um texto de Osho Zenju Earthlyn Manuel que está no livro The Deepest Peace: Contemplations from a Season of Stillness. A tradução é de Marina França e revisão de Fábio Rodrigues. Osho Zenju estará conosco no Intensivo SIM, que começa em poucos dias: www.olugar.org/sim
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Eu me sento à porta de casa. O vapor do chá vermelho revoa em direção ao arrulho choroso das pombas. Vejo os rostos da minha mãe e do meu pai nas montanhas. Eles morreram, mas nunca foram embora. Escrevo na terra com um galho caído: na morte deixamos para trás o brilho de nossas vidas.
As palavras me lembram o poeta Jokin Keizan Zenji. Imagino-o traçando pinceladas lentas de tinta, escrevendo a sabedoria das ancestrais despertas que irradia em todas nós: vidas brilhantes insuperáveis nascem de outras vidas brilhantes insuperáveis.
A tinta desaparece na cauda do último traço. Ele toca a ponta do pincel na pedra que guarda a tinta. Iniciando, o líquido preto pinga no papel de arroz feito em casa. Finalmente, sua mão dança com o pincel. Ele pinta no papel que uma vez foi arroz, que uma vez foi semente, que uma vez foi terra: recebemos a face destas pela luz transmitida sem nada que falte.
O brilho antigo do primeiro despertar está em nossos olhos, em nossos rostos. Toda a alegria e fé do mundo foram dadas e recebidas no nascimento. O poder de praticar o despertar original nesta terra está presente quando somos cientes de tal poder.
A pobre pomba ainda arrulha. Sirvo chá sobre as palavras que escrevi na terra. Agora há ali um pouco de lama. Olho para a lama e entendo que o fruto da terra foi criado no tempo infinito, antes de Buda, antes de Cristo. Essa vida infinda e antiga está refletida em cada uma de nós. Em nossos rostos se avistam grandes seres de tempos imemoriais. Se quisermos vê-los, podemos fitar olho no olho, cara a cara, corpo a corpo, mesmo que os seres despertos originais não estejam diante de nós. Isso é o que me lembro da poesia de Jokin.
Ainda sento-me ao sol sob uma árvore cheia de amoras. Saúdo as ancestrais que me iluminaram o rosto antes de minha existência. Tento não fugir com medo da radiância à qual me assemelho, tento não fugir com medo de mim mesma — sem ter visto a mim mesma, como me reconhecer herdeira da sabedoria há eons transmitida?
Bebo meu chá e olho meus pés. Deve ter sido um choque quando a terra tomou forma em meu nascimento. Árvores surgiram à vista, senti cheiro de gardênias, ouvi asas de beija-flores, provei o leite materno, meus olhos foram lavados com lágrimas.
Milhares de anos se passaram desde a morte daquelas de quem eu vim, e ainda é possível oferecer incenso, flores, comida, curvar-se a elas, tocar sinos ou soprar um apito feito com o osso de uma águia — para que eu possa limpar os ouvidos e escrever na terra o que está sendo dito.
Jokin ouviu. Ele pincelou a sabedoria das ancestrais despertas com tinta feita de carvão, feito de galhos queimados, com um pincel feito dos pelos de uma cabra: sua mente não pode pensá-lo, mas tampouco você tem que sonhá-lo
Conscientes do início dos tempos, nós sabemos que o que buscamos já está feito. A paz está nesse saber. Paz é saber que não apenas viemos à Terra, mas que temos estado aqui através de uma linhagem de despertares. Ao escutar e olhar profundamente umas às outras, podemos ouvir a sabedoria no arrulhar das pombas chorosas. Ancestrais despertas falaram através do silêncio e a mão de Jokin traçou com tinta. Me levanto e caminho em meditação com a essência da poesia de Jokin.
Dou um passo e respiro.
aqui está a vida
você pode com esta vida ver toda a natureza
no seu olho, seu rosto e seu corpo
Respiro e dou dois passos lentos e deliberados.
através de uma fonte de luz herdada, você pode ver
Respiro e dou mais dois passos.
Uma vida que pode ser alcançada, possuída, nomeada e controlada não é a antiga
vida que nos foi dada. nós andamos com uma vida antiga.
Respire e dê três passos.
as montanhas são espelhos de nossas faces
os rios são espelhos de nossos corpos
Respirando e ficando no lugar por um momento.
nós somos a vida antiga antes de sabermos da vida
não há fim para esta vida ser dada e recebida
Agora, continue respirando, continue caminhando.
No tempo infinito, meus ossos têm mil anos. O chá que bebo tocou meus lábios por milênios. A amoreira estava sobre minha cabeça antes de eu nascer. A árvore e o chá são avós de muito tempo atrás e é por isso que os reconheço. E ainda assim, não consigo conceber na mente a minha semelhança com o brilho da árvore ou do chá. Posso apenas caminhar na terra um milhão de vezes.
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SIM 2022: Intensivo online para sonhar outro mundo
Encontros com Eliane Brum, Ailton Krenak, Sensei Kritee Kanko, Zenju Earthlyn Manuel, Geni Núñez e Emersom Karma Kontchog, de 7 de fevereiro a 21 de março de 2022
“Dizer não às más ideias e aos maus atores simplesmente não basta. O mais firme dos nãos tem de ser acompanhado por um sim ousado e visionário — um plano para o futuro que seja crível e atraente o suficiente para que um grande número de pessoas se movimente para vê-lo realizado.”
—Naomi Klein (no livro “Não basta dizer não”)
Em 2019 organizamos a primeira edição do intensivo SIM. A reação das pessoas foi tão forte que entendemos a necessidade de organizar esse intensivo anualmente. Nas edições de 2020 e 2021, convidamos grandes seres para nos orientar: Lama Elizabeth Mattis-Namgyel, Roshi Joan Halifax, Lama Padma Samten, Ailton Krenak, Reinaldo Nascimento, Kazuaki Tanahashi Sensei, Camila Nunes Dias, Geni Núñez e Thiago Ávila. Foi maravilhoso e acabou se desdobrando em muitos processos ao longo dos anos.
Agora, de 7 de fevereiro a 21 de março de 2022, faremos uma nova edição do SIM, dessa vez com Eliane Brum, Ailton Krenak, Sensei Kritee Kanko, Zenju Earthlyn Manuel, Geni Núñez e Emersom Karma Kontchog, para nos orientar por seis semanas de estudo e prática. Em seus trabalhos, todos manifestam a atitude visionária e propositiva que o Brasil e o mundo tanto precisam.
Será online, com cerca de mil participantes de todos os estados do Brasil e de mais de 20 países. Veja abaixo como será e comece o ano praticando em comunidade.