A Primavera – Lama Padma Samten

por Fábio Rodrigues

O texto abaixo é a parte final do livro “Relações e Redes”, do Lama Padma Samten, que fará a abertura do Intensivo SIM deste ano com uma fala aberta sobre o ensinamento das flores e da primavera. Veja como participar.


Nosso surgimento é na verdade a coemergência de nosso mundo interno com pessoas ao nosso redor em seus vários mundos mentais e emocionais, com autoridades e com o ambiente e seus seres infinitamente variados de samsaras superpostos. Quando falamos em relacionamento, é porque nos sentimos separados, é porque perdemos a visão da coemergência e não dualidade e então o verbo “relacionar” ganha sentido. Lembro do cacique guarani André dizendo “não entendo quando vocês juruá dizem que querem proteger a natureza, eu sou a natureza protegendo a si mesma!”. Aqui um exemplo perfeito de não dualidade com respeito à natureza. Os ecologistas poderiam dizer “eu sou a natureza protegendo a si mesma” e isso seria rigorosamente verdadeiro, mas a não dualidade de modo geral é apenas um conceito, nossa visão segue dual.

Dentro da nuvem transitória dos tempos de degenerescência onde a lucidez da não dualidade fica obscurecida é que os ensinamentos budistas fazem sentido novamente. Esses ensinamentos nem são orientais e nem ocidentais. Não podem ser geograficamente localizados. Sua essência é entender como nossas mentes funcionam e como funciona a natureza e todos os seres. É evidente a proximidade com a ciência no aspecto de observação livre e sem pressupostos das aparências. O método do budismo inclui a observação das próprias estruturas de conhecimento e energia que geram e dão sentido ao que é observado, algo que na cultura ocidental foi belamente acessado, entre outros, por Ludwig Wittgenstein na filosofia e Niels Bohr na física.

Guapuruvu (Schizolobium parahyba)

Há o caminho espiritual das pessoas que, aspirando aprofundar o acesso ao que é verdadeiro e ultrapassar o transitório, se retiram do mundo. Há o caminho espiritual dos que usam justamente as aparências externas e as aparências internas criadas pela mente para gerar lucidez e ultrapassar os processos ilusórios que produzem e dão solidez a essas aparências. Há ainda o caminho espiritual dos bodisatvas, que focam o benefício de todos os seres e reconhecem a rede infinita que conecta a todos em uma realidade inseparável constituída de mundos superpostos, além do tempo e do espaço, cuja vitalidade ultrapassa as aparências de vida e de morte.

Ao sentar em roda, as pessoas olhando-se umas às outras, avaliando o que tem funcionado bem e o que pode melhorar geram visões convergentes para a ação de suas mentes e energias. Movidas pela originação dependente, referenciadas pelos sonhos conjuntos, cada um manifesta sua mente criativa. E, em conjunto, muitas inteligências constroem as realidades e mundos mágicos de possibilidades benignas que manifestam as Terras Puras onde cada um pode estar mais próximo da lucidez espiritual última.

Sentam em roda os pais, mães, avós, filhos, jovens, crianças. Assim construímos passo a passo o tecido social compassivo, as oportunidades econômicas. Estamos desafiados a construir as redes compassivas que manifestem esse tecido social ambientalmente sustentável. O surgimento dessas oportunidades vem junto com o brilho dos olhos e a alegria do coração. A vida pulsa e se constrói positivamente. O mundo volta a fazer sentido.

“Uma flor abre o mundo” – Pintura de Kazuaki Tanahashi para o Lama Padma Samten

“Quando a velha ameixeira se abre de repente, surge o mundo das flores desabrochando. No momento em que surge o mundo das flores desabrochando, a primavera chega. Há uma única flor que abre cinco pétalas. Neste momento de uma única flor, há três, quatro e cinco flores, centenas, milhares, miríades, bilhões de flores — flores incontáveis. Essas florações são não-envaidecidas de um, dois ou incontáveis ramos da velha ameixeira. Uma flor de udumbara e flores de lótus azul também são um ou dois ramos das flores da velha ameixeira. Florescer é a oferenda da velha ameixeira.”

—Eihei Dogen, no fascículo “Flores de Ameixeira” (梅華: Baika)

Sob o ponto de vista espiritual temos o encontro com os desafios e dificuldades, o encontro com a violência e desarticulação não é respondido com inimizade e agressão. A negatividade e a dor, em lugar de produzirem mais dor e mais negatividade, produzem o impulso vital da construção de mundos melhores e relações equilibradas e lúcidas. Essa energia nos dá um nascimento espiritual elevado e sustenta nossas vidas, é a própria essência da alegria e felicidade. A felicidade é possível. Deste modo todas as relações se tornam vitoriosas, todos os desafios são néctar.

A mudança da mente muda o mundo. A flor cria a primavera, a visão da primavera muda o mundo inteiro. Sim, a realidade é luminosa, coemergente com a mente. Essa é a era da luminosidade. É o tempo de acessar as possibilidades do que antes não era visto. É o tempo de acessar as liberdades naturais incessantemente presentes. É o tempo da lucidez. É o tempo das Terras Puras. A ciência, hoje aprisionada ao processo econômico, se tornará aliada de Terra Pura. Não é o tempo da estreiteza da visão e nem do sofrimento. A visão estreita será ampliada. O mundo é um jardim da luminosidade da mente. Estamos no alvorecer de uma nova era de visão. O poder dessa visão curará o mundo.

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Arte de Fábio Rodrigues a partir da contemplação das flores do guarapuvu

Começa em fevereiro o Intensivo SIM para afirmar a vida e a dignidade

Observe a quantidade de tempo que perdemos repercutindo falas absurdas de políticos, memes e hashtags, distraídos por uma enxurrada de desinformação. Sem querer, ficamos impotentes. Deixamos que a notícia do dia sequestre nossas conversas e defina nossos movimentos. Quando os problemas se intensificam, nossa reação habitual é negar, reclamar, nos juntar pela oposição, apontar culpados e inimigos. Isso quando não ficamos indiferentes e tentamos só buscar algum sucesso pessoal.

E se a gente começar a afirmar outra coisa? Em vez de apenas combater monstros e problemas, e se olharmos para a nossa própria bondade e criatividade? E se fortalecermos ainda mais nossas qualidades positivas, sonhos, visões amplas e relações? E se trocarmos desespero por compaixão, medo por alegria, autointeresse por comunidade? Dia 1 de fevereiro vamos começar o intensivo SIM, inteiro online, com pessoas de todo o Brasil e do mundo, e convidados muito especiais.

Se quiser participar, todas as informações estão aqui: olugar.org/sim